Título: Pato manco não voa
Autor: Sergio Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/04/2006, Espço Aberto, p. A2

O segundo mandato de um presidente costuma ser decepcionante. Dificilmente é melhor que o primeiro e em geral resulta negativo para ele e para o país. A razão é simples: além do desgaste natural do tempo, o presidente, reeleito, não conta mais com a perspectiva de um novo mandato sucessivo no mesmo cargo.

Por isso, mais cedo que tarde no curso do segundo mandato, tende a definhar o seu poder real (a despeito da força institucional da posição que ocupa). A exceção fica por conta daqueles que, por virtude e/ou circunstância, conseguem relançar a sua agenda política e restabelecer, ao menos em parte, o impulso inicial do primeiro mandato.

Essa consideração vem a propósito da seguinte pergunta: na hipótese de conquistar mais um mandato, estará Lula em condições de escapar à tendência de logo se tornar um "pato manco" ("lame duck", na expressão consagrada em inglês para descrever o governante que perdeu o poder efetivo de governar)? A julgar pelos quatro anos do atual mandato, a resposta é não.

De início, tivemos um curto e muito limitado ciclo de reformas. A importante reforma da previdência do setor público se aguou por falta de legislação complementar. Da reforma tributária nada resultou de positivo. Ao contrário: a carga elevou-se mais ainda e a qualidade do sistema tributário se deteriorou adicionalmente, com modificações desastradas na legislação do PIS e da Cofins. Das reformas microeconômicas, houve algum avanço com a nova Lei de Falências e as modificações na legislação relativa ao crédito habitacional, ambas iniciativas que há muito amadureciam na área econômica. No frigir dos ovos, sobrou muito pouco.

De resto, o que se viu foi um governo sem agenda e sem direção estratégica, apesar da farta retórica em contrário. Não raro adotando políticas contraditórias e fazendo oposição a si mesmo. Fosse só isso, já seria o caso de não repetir a experiência. Mas foi pior.

Com um pé preso na negociação miúda de apoios pontuais no Congresso e outro ativo no jogo graúdo da acumulação de poder para si e seu partido no Executivo e nas empresas estatais e seus fundos de pensão, a fórmula política do governo revelou-se um desastre completo: de um lado, daninha para as instituições e os valores da democracia; de outro, pródiga na criação de crises políticas (pela assimetria na distribuição de recursos de poder entre os membros da coalizão e pela voracidade do partido dominante, o PT).

Quando o curto-circuito se deu, pelas denúncias de um "insider" insatisfeito, o deputado Roberto Jefferson, o governo optou por salvar as perspectivas eleitorais do presidente em detrimento da possível regeneração do governo. Talvez já fosse tarde para um governo que havia desde cedo envenenado o ambiente político tratando adversários como inimigos, insultando a inteligência alheia com afirmações descabidas sobre a História do País e fazendo pouco do discernimento das pessoas com justificativas risíveis sobre episódios como o que envolveu Waldomiro Diniz, assessor direto do então chefe da Casa Civil.

Em vez de uma versão plausível, se não a verdadeira, sobre a crise do "mensalão", a opção consistiu em oferecer um misto de pão e circo. Do circo o governo tomou emprestado o ilusionismo mambembe, apostando na credulidade da maior parte da platéia e no seu poder de difundir e confundir as informações a seu favor. O pão veio dentro de um saco de bondades, que começou a ser aberto com a ampliação do Bolsa-Família e culminou com o recente aumento do salário mínimo, passando por várias medidas de alívio tributário a setores e atividades específicas.

A tática aparentemente surtiu o efeito pretendido, ajudada por um cenário externo extraordinariamente positivo. Seu fôlego, porém, é de curto prazo. Primeiro, porque esbarra em limites fiscais que impedem a reiteração das "bondades" feitas neste ano. Segundo, porque agrava, ao invés de sanar, o dano causado à imagem do governo e de seu partido entre os setores mais instruídos e informados da sociedade (e menos dependentes das transferências governamentais).

É possível vencer as eleições sem os votos desses setores numericamente minoritários. Mas já nasce fraco o presidente que aí encontra forte e espraiada rejeição. É o que se vê nas pesquisas de intenção de voto, que, a despeito de mostrarem Lula à frente dos seus adversários, indicam uma rejeição ao presidente superior a 40% nas faixas de renda e instrução mais elevadas. Mais que um fenômeno passageiro, esse sentimento parece refletir a perda de respeito pela figura presidencial, decorrente da tática adotada para preservar a imagem pessoal do presidente diante da maioria do eleitorado.

Presidente desprestigiado na opinião pública é sinônimo de presidente com capacidade limitada para definir a agenda política e recrutar os quadros necessários para fazê-la avançar com legitimidade e eficiência. Nessas condições, o mais provável é que o chefe do Executivo se veja encurralado pelos interesses pontuais que se expressam por intermédio do sistema de partidos e do Congresso. Entres as alternativas que lhe sobram - governar defensivamente, entregar-se ao escambo de cargos e recursos ou tentar ação simbólica ou material de impacto, para "virar o jogo" - , nenhuma é promissora para o País.

Não quero nem sou capaz de fazer vaticínio, muito menos lançar mau agouro. Essas são considerações probabilísticas sobre o futuro, baseadas na experiência observada, e não certezas cientificamente comprovadas. Nem por isso deixam de ser válidas para um país que precisa voar mais alto e mais rápido se não quiser ver aumentar a distância que o separa do mundo desenvolvido e mesmo do pelotão mais destacado dos países em desenvolvimento.

Com isso em mente, fica a pergunta: podemo-nos dar ao luxo de ter um "pato manco" na Presidência nos próximos quatro anos?