Título: Papa olha mais a Europa que o resto do planeta
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Vida&, p. A24

Igreja teme que continente possa perder sua raiz cristã

Em seu primeiro ano de pontificado, Bento XVI mostrou estar mais preocupado com a Europa do que com as demais regiões do planeta - inclusive a América Latina, região majoritariamente católica. Segundo especialistas, a prioridade se justifica pelo fato de que o continente europeu está cada vez menos religioso.

Em 2004, a União Européia aprovou sua Constituição e não fez nenhuma menção às raízes cristãs do continente. No mesmo ano, a França proibiu que símbolos religiosos, como o crucifixo, fossem usados em escolas e outros prédios públicos do país.

"Numa comparação brasileira, é como se o papa criticasse os políticos do PT por não defenderem mais os seus princípios. Ele acha que os cristãos da Europa ficaram relaxados e não defendem bem a fé", diz o jornalista Juan Arias, que trabalhou durante 14 anos no Vaticano como correspondente do jornal espanhol El País e é autor de livros que tratam do cristianismo.

A prioridade de Bento XVI fica cada vez mais evidente. Em junho, o Vaticano fez uma intensa campanha para que os católicos boicotassem o plebiscito que propunha mudanças na lei de reprodução assistida na Itália, incluindo questões polêmicas como congelamento de embriões e pesquisas com células-tronco embrionárias. No final, a Igreja venceu. O plebiscito fracassou porque apenas 25% dos eleitores foram às urnas - não houve quórum.

Um mês depois, o Vaticano criticou duramente o fato de a Espanha ter aprovado a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Para o L'Observatore Romano, o jornal oficioso da Santa Sé, a aprovação da lei espanhola foi "uma derrota desalentadora para a humanidade", pois "qualquer tentativa de modificar o projeto de Deus para a família é uma tentativa de desfigurar a face mais autêntica da humanidade".

A preocupação com o avanço de iniciativas semelhantes no continente europeu - o Reino Unido permitiu a união civil de homossexuais em dezembro - pode ser encontrada implicitamente na primeira encíclica de Bento XVI, Deus É Amor, publicada em janeiro. Nela, o papa descreve o "êxtase" do amor físico "entre homem e mulher" como algo que leva ao amor de Deus.

VIAGEM AO BRASIL

Além disso, a primeira e única viagem do papa para fora da Itália foi à Alemanha, seu país natal, em agosto. A próxima viagem internacional está programa para o mês que vem. Previsivelmente, será a outro país europeu, a Polônia, onde nasceu seu antecessor, João Paulo II.

O papa polonês, em 27 anos como líder dos católicos, fez em média quatro viagens por ano. "Acompanhei João Paulo em várias dessas viagens", continua Juan Arias. "Ele queria uma Igreja universal, queria se fazer presente no mundo inteiro. No final, ele estava particularmente preocupado com a Ásia."

A primeira viagem de Bento XVI ao Brasil, o maior país católico do mundo, está marcada para maio do ano que vem - dois anos depois de sua eleição como papa. Ele irá a Aparecida, no interior de São Paulo, participar da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. A escolha da cidade foi feita pelo próprio papa.

Para o jornalista Arias, Bento deveria olhar com mais atenção para o País, "que é a grande reserva do cristianismo". "O catolicismo no Brasil está perdendo espaço para os evangélicos, que também são cristãos. Mesmo quem tem religião africana pratica o cristianismo. Ou seja, o Brasil é um país praticamente 100% cristão, é onde está o novo cristianismo."

O teólogo Jung Mo Sung, professor da Universidade Metodista de São Paulo, afirma que o cardeal Joseph Ratzinger revelou sua preocupação com a Europa logo que se elegeu, ao escolher o nome Bento. Muitos apostavam que seria João Paulo III, por causa da estreita ligação com seu antecessor.

Segundo Mo Sung, os seguidores de São Bento foram importantes para a reconstrução da Europa após as invasões dos povos bárbaros, na Idade Média. Naquela época, após a queda do Império Romano, as cidades foram saqueadas. Muitos livros e obras de arte só não se perderam porque foram guardados nas bibliotecas dos mosteiros beneditinos, que conseguiram escapar dos ataques. "A Europa se reconstruiu culturalmente através dos mosteiros", diz o teólogo.

Dom Pedro Casaldáliga, bispo prelado emérito de São Félix do Araguaia (MT), que foi perseguido pelo cardeal Ratzinger por defender a Teologia da Libertação (acusada de usar instrumentos marxistas na defesa dos excluídos), diz que os católicos devem manter sua fé independentemente de quem seja o papa: "A Igreja é mais que o papa. O reino de Deus é mais que a Igreja". R.W.