Título: Bento XVI, o pastor supremo
Autor: Hans Kung
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Vida&, p. A26

Jamais disfarcei o fato de que fiquei tremendamente desapontado quando o mais recente conclave escolheu como papa o cardeal Joseph Ratzinger, chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, outrora chamada de Inquisição.

No entanto, Bento XVI merecia uma chance. Assim, apesar de todas as críticas, contive inicialmente meu julgamento e, como havia planejado anos antes, solicitei uma conversa pessoal com o novo papa.

Eu havia esperado 27 anos, em vão, por uma resposta a minhas cartas a João Paulo II, por isso é compreensível que tenha ficado surpreso e encantado quando, depois de escrever a Bento XVI em 30 de maio de 2005, recebi uma resposta amigável já em 15 de junho: o novo papa estava pronto para uma "conversa fraterna" comigo.

Essa conversa ocorreu em 24 de setembro, no palácio de verão do papa em Castel Gandolfo, e durou quatro horas inteiras. Para muitas pessoas em todo o mundo, isso era um sinal de esperança de que, embora tivéssemos seguido diferentes caminhos e adotado diferentes pontos de vista, continuávamos tendo algo de decisivo em comum: somos ambos cristãos, ambos servimos à mesma Igreja e, apesar de todas as controvérsias, nos respeitamos mutuamente.

Não cobrimos todo o leque de nossas diferenças. Eu queria apresentar as preocupações de uma parcela grande e importante de nossa Igreja Católica. Junto como minha carta, havia incluído minha Carta Aberta aos Cardeais, publicada antes do conclave, que trazia minha opinião sobre o futuro da Igreja e um programa abrangente de reformas. Mas não parecia fazer sentido dedicar essa conversa pessoal aos detalhes de reformas individuais dentro da Igreja sobre as quais Bento e eu temos visões radicalmente diferentes desde há muito.

Em termos gerais, eu esperava não um outro papa de mídia, mas um papa pastoral simpático ao ecumenismo. E havia sinais de esperanças nisso.

Este papa é um estudioso mais tranqüilo e meditativo, dado à reflexão, que não se envolve continuamente em grandes aparições públicas e que reduziu o número tanto das visitas papais como das audiências públicas em Roma.

Ele é um pastor supremo que avança mais em passos curtos e lentos, que precisa de tempo e que prefere utilizar mudanças pequenas a colocar as grandes em movimento. Curtos períodos de discussão livre no último Sínodo de Bispos e seu convite aos cardeais para que externassem suas opiniões livremente ofereceram pelo menos um começo de colegialidade.

Bento é, em suma, um conservador que ainda é aberto em muitos aspectos. De qualquer modo, ele não é um conservador absolutamente rígido e ainda poderá dar ao mundo algumas surpresas, como fez com sua presteza em conversar comigo.

Sei que muitos observadores respeitáveis deste pontificado estão céticos, perguntando: "Pode um leopardo mudar suas manchas?". Eu continuo realista, mas não quero desistir da esperança. As coisas raramente acontecem como se espera, mas elas nem sempre são tão ruins como se teme.

Então, para onde Bento XVI está conduzindo a Igreja Católica? A questão tem uma significação política global, não só para católicos e outros cristãos, mas também para seguidores de outras fés e homens e mulheres seculares na políticas, nos negócios e no mundo acadêmico.

Afinal, com mais de 1 bilhão de membros ativos, passivos ou nominais, a Igreja Católica é o organismo religioso multinacional mais importante do mundo, com uma organização interna suficientemente forte para se tornar uma agente global eficiente apesar de todas as suas fraquezas.

Chefes de Estado e de governo de todo o mundo foram à Praça de São Pedro para o funeral de João Paulo II, e não exclusivamente por devoção.

Independentemente de sua pessoa, o papa é um poder espiritual mundial e para muitas pessoas, jovens e velhas, é uma figura moral incrível com quem elas se identificam.

O rumo futuro da Igreja Católica tem, portanto, uma importância global, e foram questões globais que Bento e eu discutimos em nossa conversa em Castel Gandolfo. Em particular, falamos de três áreas de problemas em que eu espero algum progresso no novo papado.

A primeira foi a relação entre a fé cristã e a ciência, na verdade, as disciplinas seculares em geral. A racionalidade da fé sempre foi importante para o Ratzinger teólogo, e, na nota conjunta à imprensa depois de nosso encontro, o papa "endossou a preocupação do professor Kung com reviver o diálogo entre fé e ciência e mostrar como em sua natureza racional e necessária a questão de Deus pode empregar o pensamento científico". Mas eu não sei qual é o alcance desse endosso. Ele se limita às questões físicas, biológicas e teológicas da origem do cosmo, da vida e da humanidade, ou poderia se estender numa conversa racional a outras questões de biologia e medicina, como pesquisa com embriões, controle de natalidade e inseminação artificial?

Discutimos também o diálogo de religiões. Em várias ocasiões, Bento falou contra a idéia de um "choque de civilizações." Ele também está convencido de que não haverá paz entre as religiões sem um diálogo entre elas. Assim, na nota à imprensa, eu pude expressar minha "aprovação à preocupação do papa com o diálogo entre as religiões e o encontro com vários grupos sociais do mundo moderno". Também aqui, contudo, ficou-me uma pergunta: com todos os defeitos do cristianismo e os pontos positivos de outras fés, este papa será capaz de combinar sua convicção da verdade de sua própria fé com o respeito pelas verdade de outras fés?

Na terceira e última questão, nós conversamos sobre a importância de uma ética humana comum. Bento entende que "o Projeto Ético Global não é, de maneira nenhuma, uma construção intelectual", mas antes traz à luz "os valores morais para os quais as grandes religiões do mundo convergem, apesar de todas as suas diferenças; por sua convincente significação, essas religiões podem se provar critérios válidos também para a razão secular". É seguramente um reforço importante para o Projeto Ético Global que o papa veja sob uma luz positiva minha preocupação de muitos anos "de contribuir para um reconhecimento renovado dos valores morais intrínsecos da humanidade no diálogo de religiões e no encontro com a razão secular" e que, além disso, ele também enfatize "que o compromisso com uma renovada consciência dos valores que sustentam a vida humana é também uma preocupação fundamental de seu pontificado".

De novo, porém, precisamos perguntar: na próxima reunião de líderes religiosos em Assis ou alhures, haverá somente orações ou será possível também salientar os padrões éticos compartilhados pelas religiões?

OLHANDO PARA O FUTURO

Evidentemente, eu não tinha ilusões de um verdadeiro acordo entre Bento e eu. E tampouco as tenho agora. De comum acordo, nós nos concentramos em questões de "política externa" da Igreja, tocando só de leve nas questões controversas da "política interna" da Igreja que vêm sendo vigorosamente questionadas na comunidade da Igreja.

Bento certamente sabe que não pode esperar de mim que me cale sobre minhas preocupações com reformas no futuro, preocupações que não são exclusivamente minhas.

Evitar a "política doméstica" da Igreja pode favorecer uma conversa mais conveniente, mas a Igreja Católica vive uma crise tão séria - uma crise enraizada nessas "questões domésticas" - que nenhum papa poderia razoavelmente esperar deixar de lado indefinidamente essas questões.

Em minha Carta Aberta aos Cardeais, eu me apoiei no Novo Testamento, na grande tradição católica e no Concílio Vaticano II (1962-65) para responder à pergunta de que tipo de papa a Igreja Católica precisava.

Um ano se passou, mas se Bento é esse homem é uma questão em aberto.

Agora que se assentou em seu papel de papa, Bento precisa escolher entre um novo recuo para o universo pré-moderno, pré-Reforma da Idade Média e uma estratégia de olhar para frente que moverá a Igreja para um universo pós-moderno em que o resto do mundo há muito entrou.

Bento pode decidir pelo recuo, mas duvido que o fará. Ele poderá optar por permanecer onde está, mas simplesmente celebrar o papado em vez de ajudar a Igreja em sua necessidade seria, de fato, um passo atrás.

Ou poderia decidir pelo avanço, e isto é o que eu e inúmeras pessoas - dentro e fora da Igreja - esperamos dele.

O papa percebe que a Igreja vive uma situação grave. João Paulo II não conseguiu muitos conversos para suas opiniões rigorosas, especialmente com respeito à moralidade sexual e marital, apesar de todos os seus discursos e viagens. Essas opiniões foram rejeitadas pela maioria esmagadora dos católicos e dos parlamentos nacionais, mesmo em sua Polônia natal. Todas suas encíclicas e catecismos, todos seus decretos e sanções disciplinares, todas as pressões do Vaticano, abertas e veladas, sobre seus oponentes de fato não resultaram em quase nada.

Talvez Bento também tenha sido capaz de perceber do Vaticano que sua campanha pela "reenvagelização da Europa" fomentou temores do imperialismo espiritual de Roma e tacitamente contribuiu para a rejeição de qualquer menção a Deus ou mesmo ao cristianismo como um fator cultural no preâmbulo da Constituição Européia.

As manifestações de massa papais, por mais bem organizadas e eficazes em atrair a mídia, não conseguem esconder o fato de que, por trás de sua fachada triunfal, as coisas não parecem boas para a Igreja.

Existe um abismo profundo entre o que a hierarquia comanda e aquilo em que os membros da Igreja efetivamente acreditam, um abismo refletido em como eles vivem. O comparecimento à igreja esta em declínio, assim como os casamentos religiosos. A prática da confissão desapareceu na maioria dos países ocidentais, e a aceitação de dogmas da Igreja está em queda.

As fileiras do clero estão diminuindo e há poucos substitutos disponíveis, em parte porque a credibilidade clerical tem sido severamente abalada pelos escândalos de pedofilia que se espalharam dos Estados Unidos e da Irlanda para a Áustria e a Polônia.

Enquanto o papa tentar alcançar o primado absolutista do domínio romano, ele terá a maioria dos cristãos e do público mundial contra ele. Somente se ele abraçar o modelo de João XXIII e tentar praticar um primado pastoral de serviço, renovado à luz do Evangelho e comprometido com a liberdade, ele será um fiador da liberdade e da abertura na Igreja e será capaz de servir ao mundo como uma bússola moral.

Se Bento XVI conseguir levar a Igreja para fora de sua crise de confiança e esperança, ele levará o que Karl Rahner chamou de "igreja de inverno" para uma nova primavera. Ele conhece a Cúria e o episcopado melhor do que ninguém, e, diferentemente de seu predecessor, é um bom administrador e um estudioso distinguido. Um de seus rivais no conclave me disse que, se quisesse, Bento poderia realizar reformas que um papa mais progressista não consideraria tão fácil.

Muitas pessoas dentro e fora da Igreja Católica estão esperando a ruptura de um congestionamento de reformas de um quarto de século. Elas querem que os antigos problemas estruturais da Igreja sejam discutidos abertamente e querem receber soluções, seja do novo papa pessoalmente, do Sínodo de Bispos ou mesmo de um Concílio Vaticano III.