Título: A ajuda da CIA para bomba do Irã
Autor: James Risen
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Internacional, p. A16

Plano era pôr projeto furado nas mãos dos iranianos. Mas o agente duplo entregou o jogo. E Teerã pode tirar proveito

Ela provavelmente já havia feito isso uma dezena de vezes. A moderna tecnologia digital fez as comunicações clandestinas com agentes no exterior parecerem rotina. Nos tempos da guerra fria, contatar um agente secreto em Moscou ou Pequim era um processo arriscado e laborioso que podia levar dias ou semanas. Em 2004, porém, era possível enviar mensagens codificadas em alta velocidade direta e instantaneamente do quartel-general da CIA a agentes de campo equipados com pequenos dispositivos secretos de comunicação pessoal. Assim, a funcionária na sede da CIA encarregada das comunicações com os espiões da agência no Irã provavelmente não pensou duas vezes quando começou seu mais recente envio. Com alguns comandos simples, ela mandou um fluxo de dados secretos a um dos agentes iranianos da rede de espionagem da CIA, como havia feito tantas outras vezes.

Mas, desta vez , a facilidade e velocidade da tecnologia a traíram. A funcionária havia cometido um erro desastroso. Havia enviado informações a um agente iraniano que expuseram toda uma rede de espionagem; os dados poderiam ser usados para identificar virtualmente todos os espiões da CIA dentro do Irã.

Erro puxa erro. Como a CIA tomou conhecimento posteriormente, o iraniano que recebeu os dados era um agente duplo. O agente rapidamente passou os dados a agentes de segurança iranianos, e isto os capacitou a identificar a rede da CIA por todo o Irã. Fontes da CIA dizem que vários de seus agentes em território iraniano foram detidos e encarcerados, e que o destino de alguns dos outros continua desconhecido.

Esse desastre de espionagem, é claro, não foi noticiado. Ele deixou a CIA virtualmente cega no Irã, incapaz de fornecer informações sigilosas significativas sobre uma das questões mais críticas para os EUA - se Teerã estava prestes a se tornar um regime nuclear.

Na verdade, justo quando o presidente Bush e seus assessores afirmavam, em 2004 e 2005, que o Irã fazia rápidos progressos no desenvolvimento de armas nucleares, a comunidade de inteligência americana viu-se incapaz de fornecer as evidências para respaldar os argumentos públicos do governo. Depois do fracasso da CIA em fornecer informações secretas precisas sobre as alegadas armas de destruição em massa antes da guerra no Iraque, a agência mais uma vez estava sem pistas no Oriente Médio. Na primavera de 2005, que no Hemisfério Norte vai de março a junho, logo depois do desastre iraniano da CIA, Porter Gross, seu novo diretor, disse ao presidente Bush num briefing na Casa Branca que a CIA realmente não sabia em que pé o Irã estava com seu programa para obter armas nucleares. Mas é pior que isso. Nas entranhas profundas da CIA, alguém deve estar nervosamente, mas muito privadamente, pensando: "Que raios terá acontecido com aqueles planos nucleares que nós entregamos aos iranianos?"

A história remonta à administração de Bill Clinton e a fevereiro de 2000, quando um cientista russo assustado caminhava pelas ruas de Viena no inverno. O russo tinha bons motivos para estar assustado. Ele estava carregando planos de uma bomba nuclear.

Para ser preciso, estava carregando desenhos técnicos para um bloco de alta voltagem TBA 480, também conhecido como "conjunto de disparo", para uma arma nuclear projetada pelos russos. Ele levava na mão o conhecimento necessário para criar uma implosão perfeita que dispararia uma reação nuclear em cadeia no interior de um pequeno núcleo esférico. Este era um dos maiores segredos de engenharia do mundo, fornecendo a solução para um punhado de problemas que separavam potências nucleares como os Estados Unidos e a Rússia de países irresponsáveis, como o Irã, que estavam desesperados para entrar no clube nuclear, mas ainda não haviam conseguido.

O russo, que havia desertado para os EUA alguns anos antes, ainda não podia acreditar nas ordens que recebera do quartel-general da CIA. A agência havia lhe entregado os planos nucleares e o enviara a Viena para os vender - ou simplesmente dar - aos representantes iranianos da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Com o leilão desse russo, a CIA parecia prestes a ajudar o Irã a superar um dos últimos obstáculos de engenharia no caminho para uma arma nuclear. A perigosa ironia não passou despercebida ao russo: a AIEA é uma organização internacional criada para restringir a propagação de tecnologia nuclear.

O russo era um engenheiro nuclear a soldo da CIA, que havia conseguido que ele se tornasse cidadão americano e o financiava numa base de US$ 5 mil por mês. Parecia dinheiro fácil, com poucas obrigações envolvidas.

Até aquele momento. A CIA o estava colocando na linha de frente de um plano que parecia absolutamente contrário aos interesses dos EUA, e o encarregado desse caso na CIA teve muito trabalho para convencê-lo a fazer o que parecia ser uma operação irresponsável.

O encarregado trabalhou duro para convencê-lo - apesar de ele próprio ter dúvidas sobre o plano. Enquanto tentava persuadir o russo a voar para Viena, o encarregado deve ter refletido se não estaria se envolvendo numa ação secreta ilegal. Poderia ser levado a uma comissão do Congresso e preso por ter sido o funcionário que ajudou a entregar planos nucleares ao Irã? O nome de código da operação era Merlin. Para o funcionário, aquilo parecia uma manobra de despiste, em que nada no programa era o que parecia ser. Ele fez o melhor que pôde para ocultar suas preocupações do agente russo.

A tarefa atribuída pela CIA ao russo era para ele posar de cientista desempregado e ganancioso disposto a vender a alma e os segredos da bomba atômica a quem pagasse mais. De um jeito ou de outro, disse-lhe a agência, ele devia entregar os planos nucleares aos iranianos. Eles rapidamente reconheceriam seu valor e os enviariam prontamente a seus superiores em Teerã.

O plano fora transmitido ao desertor durante uma viagem financiada pela CIA a San Francisco. Lá ele teve encontros com agentes da CIA e especialistas nucleares misturados a um grupo em viagem de lazer para provar vinhos no Condado de Sonoma. Num luxuoso quarto de hotel de San Francisco, um alto funcionário da CIA envolvido na operação instruiu o russo sobre os detalhes do plano. Ele trouxe especialistas de um dos laboratórios nacionais para explicar os planos que ele supostamente deveria entregar aos iranianos.

O alto funcionário da CIA podia ver que o russo estava nervoso, e por isso tentou minimizar o significado do que estavam lhe pedindo para fazer. Ele disse que a CIA estava montando uma operação simplesmente para descobrir em que pé os iranianos estavam com seu programa nuclear. Aquilo era apenas um esforço de reunião de informações, disse o agente da CIA, não uma tentativa ilegal de dar a bomba ao Irã. Ele sugeriu que os iranianos já tinham a tecnologia que ele ia lhes entregar. Era tudo um jogo. Nada de muito sério.

No papel, a finalidade do Merlin era supostamente retardar o desenvolvimento de um programa nuclear de Teerã colocando os especialistas de armas do Irã num caminho técnico errado. A CIA acreditava que quando os iranianos tivessem os planos e os estudassem, acreditariam que os desenhos eram aproveitáveis e assim iriam começar a construir uma bomba atômica baseada nos desenhos adulterados. Mas Teerã teria uma grande surpresa quando seus cientistas tentassem detonar a nova bomba. Em vez de uma nuvem em forma de cogumelo, testemunhariam um fiasco desapontador. O programa nuclear iraniano sofreria um retrocesso humilhante, e o objetivo de Teerã de se tornar uma potência nuclear teria sido retardado em muitos anos. Enquanto isso, a CIA, observando a reação do Irã aos planos, teria adquirido uma riqueza de informações sobre o estado do programa de armas do Irã, que estava coberto de segredo.

O russo estudou os planos que a CIA lhe entregou e em poucos minutos identificou o furo. "Isto não está certo", disse ele aos agentes da CIA reunidos no quarto de hotel. "Tem alguma coisa errada." Seus comentários provocaram olhares duros, mas nenhuma resposta direta dos homens da CIA. Ninguém no grupo pareceu surpreso com a afirmação do russo de que os planos não pareciam muito certos, mas nenhum quis esclarecê-lo mais sobre o assunto, tampouco.

Na verdade, o encarregado do caso na CIA, que era o orientador pessoal do russo, ficara espantado com sua declaração. Durante uma parada para o café, ele puxou o alto funcionário da CIA de lado. "Ele (o russo) não devia saber isso", disse ao superior. "Ele não deveria descobrir o furo."

"Não se preocupe", disse calmamente o agente superior. "Isso não tem importância."

O encarregado do caso na CIA não podia acreditar na resposta do superior, mas conseguiu aplacar os receios do russo e continuou a treiná-lo para a missão.

Depois da viagem a San Francisco, o encarregado entregou ao russo um envelope selado com os planos nucleares. Ele lhe disse para não abrir o envelope em nenhuma circunstância. Devia seguir as instruções da CIA de encontrar os iranianos e entregar o envelope com os documentos. Não complique, e saia de Viena são e salvo, disseram ao russo. Mas o desertor tinha suas próprias idéias sobre como devia jogar aquele jogo.

A CIA havia descoberto que um oficial iraniano de alta patente viajaria para Viena e visitaria a missão iraniana na AIEA, por isso decidira enviar o russo a Viena na mesma época. Ela acreditava que ele faria contato com o representante iraniano na AIEA ou com o visitante de Teerã. Em Viena, porém, o russo abriu o envelope com os planos nucleares e incluiu uma carta pessoal aos iranianos. À revelia da CIA, ele queria se resguardar. Havia algo obviamente errado nos planos - por isso ele decidiu mencionar esse fato aos iranianos na carta. Eles certamente descobririam os furos por conta própria, e se não lhes dissesse antes, jamais desejariam fazer negócios com ele de novo.

O russo logo encontrou o número 19 da Heinstrasse, um prédio de cinco andares de escritórios e apartamentos com uma fachada plana azul claro e bege num bairro calmo da zona norte de Viena. Em meio à lista de inquilinos austríacos, havia uma linha simples: "PM/Iran." Os iranianos claramente não desejavam publicidade. Um carteiro austríaco o ajudou. Enquanto o russo esperava, o porteiro abriu a porta do edifício e retirou a correspondência. O russo foi atrás. Ele percebeu que poderia deixar seu pacote sem precisar conversar com ninguém. Esgueirou-se pela porta da frente e, apressadamente, enfiou o envelope pelo orifício de correspondência da porta interna do escritório iraniano.

O russo saiu da missão sem ser visto. Sentia-se profundamente aliviado de ter feito a entrega sem ter de se encontrar frente a frente com um iraniano em carne e osso. Ele voltou para os EUA sem ser detectado pela segurança austríaca ou, mais importante, pela inteligência iraniana. Poucos dias depois que o russo entregou seu pacote na missão iraniana, a Agência de Segurança Nacional reportou que um funcionário iraniano em Viena mudara abruptamente seu programa e fizera reservas aéreas para voar para o Irã. A aposta era que os planos nucleares estavam agora em Teerã.

Os temores do cientista russo sobre a operação pareciam bem fundados. Ele foi o homem de frente daquela que pode ter sido uma das operações mais descuidadas da CIA, uma que deve ter ajudado a colocar armas nucleares nas mãos de um membro de carteirinha do que o presidente Bush tem chamado de "eixo do mal".

A operação Merlin foi um dos segredos mais bem guardados das administrações Clinton e Bush. Não está claro quem foi o autor original da idéia, mas o plano foi primeiramente aprovado por Clinton. Depois da fatídica viagem do cientista russo a Viena, porém, a operação Merlin foi endossada pela administração Bush, possivelmente com a intenção de repeti-la contra a Coréia do Norte e outros Estados perigosos.

Vários ex-agentes da CIA dizem que a teoria por trás da Merlin - entregar projetos de armas adulterados para confundir um adversário dos EUA - é um truque que foi usado muitas vezes em operações passadas, remontando à guerra fria. Mas, em casos anteriores, essas operações cavalo de Tróia envolviam armas convencionais; nenhum dos ex-agentes jamais ouviu falar de a CIA tentar fazer esse tipo de operação de alto risco com desenhos para uma bomba nuclear. Os ex-agentes disseram também que esses tipos de programas precisam ser estritamente monitorados por altos diretores da CIA para controlar o fluxo de informações para o adversário. Se forem mal conduzidos, podem facilmente ajudar o inimigo a acelerar seu desenvolvimento de armas. Isso pode ter acontecido com o Merlin.

O Irã gastou quase 20 anos tentando desenvolver armas nucleares e no processo criou uma forte base de cientistas sofisticados suficientemente informados para detectar falhas em planos nucleares. Teerã também obteve planos nucleares da rede do cientista paquistanês Abdul Qadeer Khan, e assim já tem planos funcionais com os quais comparar os desenhos obtidos da CIA. Especialistas nucleares dizem que com isso eles seriam capazes de extrair informações valiosas dos planos e ignorar os furos.

"É muito ruim", advertiu um especialista em armas nucleares da AIEA. "Eles chegarão muito rapidamente a ela (à bomba). Este é o meu medo." TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

Este artigo é um extrato editado de 'State of War:The Secret History of the CIA and the Bush Administration', do repórter do 'New York Times' James Risen, publicado com permissão da Free Press, divisão da Simon & Shuster, Inc.