Título: Levy Cardoso, o último marechal
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Nacional, p. A12

Remanescente de patente extinta em 67, ele participou dos principais levantes e revoluções do século passado

Ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, o marechal Waldemar Levy Cardoso - aos 105 anos de idade, ele é o último remanescente de uma patente extinta em 1967 - participou de todos os principais levantes e revoluções do século passado, da revolta contra Artur Bernardes em 1924 à deposição de João Goulart, 40 depois.

"Só não entrei na rebelião de 1922 porque ela já tinha terminado quando a notícia chegou, com seis horas de atraso, ao quartel de Itu (SP), onde eu servia", lembra o marechal, ao contar, com impressionantes detalhes de nomes e datas, a longa história que viveu como oficial do Exército, até passar para a reserva em 1966.

Na noite de 31 de março de 1964, há 42 anos, Levy Cardoso, então chefe do Departamento de Provisão, assistia a uma reunião de conspiradores com o general Castelo Branco, quando o general Costa e Silva redigiu um comunicado sobre o movimento contra Jango e assinou o documento com a data de 1º de abril. Estava certo, pois já era madrugada desse dia, mas o general Ernesto Geisel discordou.

"Geisel sugeriu que Costa e Silva escrevesse 31 de março, para que a data não se tornasse motivo de pilhéria, uma vez que 1º de abril é o dia da mentira", recorda Levy Cardoso. Oficial sem comando de tropa, mas de muito prestígio no Exército, ele era colega de turma de Castelo Branco e de Costa e Silva. Chegou ao generalato em agosto de 1954, duas semanas antes do suicídio de Getúlio Vargas.

Promovido a general de Exército em novembro de 1964, Levy Cardoso foi a marechal dois anos depois, pouco antes de a patente ser extinta por Castelo Branco, em 1967. Entre os últimos marechais brasileiros, destacavam-se Juarez Távora, Cordeiro de Farias, Costa e Silva e o próprio Castelo. "Fui elevado a marechal quando ainda estava na ativa", relata o ex-combatente da FEB, frisando que alcançou esse posto por mérito.

Ainda bastante lúcido e sempre atento à história - lendo jornais todos os dias, ele chegou à conclusão de que "o Brasil está bem na economia, mas vai politicamente muito mal, do presidente da República aos partidos de oposição" -, Levy Cardoso ficou eufórico com a notícia de que o País está alcançando a auto-suficiência em petróleo.

"Fui presidente da Petrobrás em 1969 e toda a vida acreditei que poderíamos ser os maiores produtores de petróleo do mundo", afirma o marechal, lembrando um dos cargos de que mais se orgulha de ter ocupado.

RIO DE JANEIRO

Carioca do centro do Rio de Janeiro, Levy Cardoso enumera com satisfação e entusiasmo as mudanças que viu a cidade atravessar, ao longo do século. "Nasci na Rua Evaristo da Veiga e, ainda criança, assisti à abertura da Avenida Central, atual Rio Branco, aquela que o prefeito Pereira Passos inaugurou dizendo que estava ligando o mar ao mar", recorda o marechal.

Assistiu também à construção do Teatro Municipal e da Biblioteca Nacional. "E, do terraço de minha casa, vi quando levantaram o Palácio Monroe, futura sede do Senado, depois demolido por causa das obras do metrô", relembra ele.

A família era toda do Rio, com exceção do pai, nascido no Rio Grande do Sul. "Ele morreu quando eu tinha 11 anos e, a partir, daí fui criado pela minha mãe, que era professora da rede municipal." Levy Cardoso tem esse sobrenome porque o pai era filho de portugueses e a mãe descendente de judeus franceses da Argélia. Educado na religião judaica, ele se converteu ao catolicismo aos 53 anos de idade, quando servia em Itu como coronel do Exército.

A conversão foi um processo que se iniciou na Itália, onde comandou o Primeiro Grupo de Obuses e participou da conquista de Monte Castelo, durante a 2ª Guerra Mundial.

Num dia em que se extraviou da posição das tropas brasileiras, entrou em uma igrejinha para pedir informação. O vigário disse que não sabia como ajudar, mas o convidou para ver uma preciosidade de sua paróquia - uma relíquia de Santa Bárbara, mártir cristã de grande devoção popular.

"Ao sair da igreja, andei alguns metros e logo vi a bandeira do Brasil tremulando no posto que eu havia perdido", conta o marechal.

Ao ouvir essa história, dez anos depois, o cardeal d. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, arcebispo de São Paulo, mandou vir da Europa outra relíquia da santa para dá-la de presente a Levy Cardoso, na época comandante do regimento de Itu.

Duas coincidências: Santa Bárbara é a padroeira da artilharia, e sua festa é celebrada em 4 de dezembro, dia do aniversário do marechal.

Mesmo que tenha se convertido ao catolicismo, Levy Cardoso recebeu uma homenagem como ex-combatente judeu pela comunidade judaica no ano passado, na comemoração dos 60 anos da tomada de Monte Castelo.

Antes e depois da guerra, o marechal participou das revoluções de 1924 e de 1930, enfrentou os comunistas no levante de 1935 e aderiu ao movimento de 1964.

Na Revolução Constitucionalista de 1932, foi preso pelas tropas paulistas quando saiu de Itu para se juntar às forças federais de Getúlio Vargas. "Fui preso uma vez em 1924 por ser contra o governo e outra em 1932 por apoiar o governo, por curiosidade no mesmo presídio militar, na Hospedaria dos Imigrantes."

PRISÃO

A fracassada rebelião contra Bernardes em 1924, quando sua bateria ocupou a Estação da Luz, custou caro a Levy Cardoso. Depois de sofrer um acidente de automóvel, indo da capital para Indaiatuba ("Tenho essa cicatriz no lado esquerdo do rosto até hoje"), abrigou-se na fazenda de seu futuro sogro, perto de Porto Feliz. Ficou lá até o dia em que, localizado por tropas federais, pulou uma janela e se escondeu em um pomar.

Detido pela polícia política, foi condenado a dois anos de prisão, cumpriu a pena e se casou com Maria da Glória, hoje com 99 anos, filha do proprietário da Fazenda Paraíso.

Quando achou que estava livre, o Supremo Tribunal Federal (STF) reformou a sentença e acrescentou mais três anos de detenção. Levy Cardoso fugiu para Paranaguá e de lá para Jacarezinho, no Paraná, onde nasceu a primeira de seus três filhos, Míriam.

Levy Cardoso e Maria da Glória completaram 78 anos de casamento no dia 31 de março, por coincidência aniversário do movimento de 1964. Uma união feliz, garante ele, 3 filhos, 11 netos e 15 bisnetos depois. Além de Míriam, que se casaria com um militar, o general da reserva Antônio Joaquim Soares Moreira, o casal teve outros dois filhos, Cláudio e Roberto, já falecido.

"Trabalhei como guarda-livro numa fazenda de café, usando o nome falso de Valfredo Leite Costa até o dia em que saiu a anistia e eu pude retornar ao Exército", explica. "Era indevidamente considerado desertor, pois o Supremo já havia reduzido outra vez a pena, de cinco para dois anos", completou o marechal.

Foi a conta de vestir o uniforme e partir para Juiz de Fora, onde se juntou às forças que apoiavam Getúlio Vargas contra o presidente Washington Luiz. Vitoriosa a revolução, retornou a Itu para comandar o regimento de artilharia. Era seu maior sonho. Ele e Maria da Glória tinham muitos amigos na região.

Os amigos paulistas se multiplicaram durante os três anos em que Levy Cardoso dirigiu o Departamento de Administração Municipal do Estado de São Paulo. Nomeado pelo interventor João Alberto, tinha por atribuições indicar e demitir prefeitos, controlar as finanças dos municípios, aprovar as leis municipais, estabelecer cooperação mútua entre Estado e municípios e julgar recursos contra atividades dos prefeitos.

SÃO PAULO

Eram os primeiros anos da ditadura de Vargas, contra quem os paulistas se levantariam em 1932 para exigir uma Constituição para o Brasil. Levy Cardoso ressalva que, embora representasse um governo autoritário, procurou desempenhar seu cargo com justiça. "Tive dificuldade para nomear o prefeito de Campinas e acabei me decidindo pelo prefeito deposto, Orozimbo Maia, figura simpática que me lembrava o barão do Rio Branco", lembra o marechal.

Maia recusou o cargo, alegando que tinha sido filiado ao Partido Republicano Paulista (PRP), que se posicionava contrariamente ao governo. "Nega-se a continuar sua obra, não quer administrar sua terra natal?", argumentou Levy Cardoso para convencer o ex-prefeito a aceitar o seu convite. Conseguiu. "Certo dia, ele me convidou para mostrar a cidade e me levou a diversos pontos turísticos, como o Ninho das Andorinhas. Almoçamos juntos, ficamos amigos", afirmou o marechal.

Levy Cardoso se emociona quando fala de São Paulo. "Ao sair da Escola Militar de Realengo como aspirante em 1921, eu poderia, pela minha classificação, ter escolhido o Rio, mas pedi para servir em Itu, porque queria conhecer o interior do Brasil", conta o marechal. "Tenho uma saudade imensa daquele tempo", disse ele no mês passado, olhando fotos do quartel da cidade.

"Sempre tive muito amor por São Paulo, faço questão de registrar essa paixão na reportagem", repetiu três vezes Levy Cardoso. Foi por isso que se sentiu dividido na Revolução de 1932: não aderiu à revolta dos paulistas, mas também não queria lutar contra eles. "Eu conheci muitos revolucionários que, como Julio de Mesquita Filho, defendiam o povo", justificou.

Levy Cardoso pouco sai de casa, mas na tarde de 28 de março deixou o apartamento da filha, em Copacabana, para receber uma homenagem na sede da Petrobrás, no centro do Rio. "Foi uma festa bonita durante a qual me prestaram uma homenagem por ter incentivado a área petroquímica, quando era presidente da empresa", contou pelo telefone, emocionado com a lembrança.

O marechal, que sempre teve uma vida bem regrada, acredita que pode estar aí uma explicação para a sua longevidade. Mas não toda a explicação."O segredo para os meus 105 anos de idade - quatro semanas no século 19, o século 20 inteiro e mais alguns anos no século 21 - é só Deus quem sabe. Ele me protege. São Pedro perdeu a minha ficha, mas acho que um dia vai encontrá-la", brincou Levy Cardoso, enquanto revia pela televisão o filme Tora! Tora! Tora!, que conta a história do ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbour.

Nascimento: 4 de dezembro de 1900, no Rio de Janeiro

Colégio Militar: Barbacena, em Minas

Aspirante de artilharia: Escola Militar do Realengo, 1921

Casamento: 31 de março de 1928

Guerra na Itália: setembro de 1944 a agosto de 1945

General: 9 de agosto de 1954