Título: O drama dos 'indocumentados'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Notas e Informações, p. A3

N o que já tem sido comparado aos movimentos pelo fim da discriminação contra a população negra, na década de 1960 - um marco na história contemporânea dos Estados Unidos -, centenas de milhares de imigrantes latino-americanos vêm participando de formidáveis manifestações de massa em dezenas de cidades e na capital. As marchas e concentrações visam a pressionar o Congresso a aprovar uma lei que permita aos mais de 11 milhões de "hispânicos" que vivem clandestinamente no país regularizar a sua situação, equiparando-se aos 36 milhões de outros imigrantes de mesma origem geográfica que entraram legalmente na América, onde trabalham, pagam impostos, têm filhos na escola e se tornaram cidadãos americanos. Deles também fazem parte os 3 milhões de ilegais anistiados em 1986 pelo presidente Reagan.

O crescimento explosivo dos "indocumentados", como deles se fala eufemisticamente, é um fenômeno recente. Nos anos 1980, por exemplo, representavam, se tanto, 1 em cada 4 imigrantes (por volta de 200 mil em 800 mil). Com a atração exercida pelo boom da economia americana na década seguinte - o mais prolongado período de prosperidade experimentado pelos Estados Unidos em tempos de paz - em contraste com o empobrecimento dos seus vizinhos ao sul do Rio Grande, a relação entre legais e ilegais mudou radicalmente. Entre 1995 e 1999, enquanto a imigração autorizada se mantinha no mesmo patamar dos decênios precedentes, na casa de 600 mil pessoas por ano, em média, o ingresso de ilegais alcançou essa marca, para depois superá-la.

A esmagadora maioria dos indocumentados entra nos EUA via México em condições terríveis. Todos os anos, centenas morrem tentando. Na sua primeira campanha presidencial, em 2000, George W. Bush, prometeu - aos eleitores e ao governo mexicano - dar conta do problema. Nada fez, a rigor, em parte devido ao clima de paranóia, exaltação nacionalista e xenofobia provocado pelo 11 de Setembro. Nem por isso diminuiu a dependência da economia americana dos indocumentados. Eles são mais da metade do 1,8 milhão de trabalhadores agrícolas. Ganham uma miséria e obviamente não têm nenhum amparo social. Ainda assim, recebem mais do que nos seus países de origem - quando têm trabalho ali.

Principalmente, sonham o mesmo sonho que, a contar de meados do século 19, levou às portas da América os incontáveis milhões que dela fizeram a primeira e maior nação de imigrantes (bem-sucedidos) da história, revolucionando a geografia humana do planeta. Mas, no passado, a América se abria de costa a costa a praticamente todos quantos tivessem dinheiro para atravessar os oceanos rumo à proverbial terra da oportunidade. É uma amarga ironia que, na era da globalização, quando o capital, o trabalho terceirizado e a cultura de massa têm livre trânsito no mundo, cresçam as barreiras à migração provocada em última análise pelas próprias "assimetrias", como se diz, da nova ordem econômica.

A atual reação nativista, visível a olho nu nos Estados Unidos, estimulou a maioria republicana na Câmara dos Representantes a aprovar em dezembro último o mais draconiano projeto sobre a questão da história do país. Prevê a construção de um muro de 1.100 quilômetros na fronteira com o México, deportações aceleradas e a criminalização não apenas dos imigrantes ilegais como dos que os empregam e os socorrem, entre eles igrejas e ONGs. Ou seja, pelo menos 11 milhões de estrangeiros e sabe-se lá quantos americanos seriam passíveis de processo criminal. Foi essa enormidade que desencadeou os protestos hispânicos, culminando com a passeata que reuniu em Washington, segunda-feira passada, 180 mil pessoas.

Três dias antes, o Senado perdeu a oportunidade de aprovar uma resposta bipartidária ao que o especialista Tamar Jacoby chama "um dilema moral diabolicamente difícil": o destino dos ilegais. De um lado, reforçaria o controle de fronteiras. De outro, daria à maioria dos indocumentados a chance de se candidatar ao ambicionado green card, ao cabo de um processo de seis anos. O projeto foi obstruído e o Senado entrou em recesso de Páscoa. Resta saber se, na volta, permitirá a travessia para a legalidade da legião de trabalhadores que apenas aspiram a ser cidadãos livres dos EUA.