Título: Saques a descoberto
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Notas e Informações, p. A3

E m apenas dois dias o governo realizou saques a descoberto no valor de R$ 26,17 bilhões, por meio de medidas provisórias editadas na quarta e na quinta-feira, uma delas já publicada em edição extraordinária do Diário Oficial. Antes dessas, outras MPs haviam servido, desde o início do ano, para financiar obras e outras despesas descritas como urgentes pelo Executivo Federal. Nas duas últimas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi especialmente ousado, abrindo créditos extraordinários no valor de R$ 1,77 bilhão e, no dia seguinte, de R$ 24,4 bilhões. O dinheiro foi destinado a programas de vários órgãos da administração federal.

O governo tem alegado o atraso na aprovação do Orçamento para justificar as MPs. Na melhor hipótese, a proposta orçamentária será votada nesta terça-feira, com quase quatro meses de atraso. "Não é só culpa da oposição", admitiu o ministro de Relações Institucionais da Presidência, Tarso Genro. "Se a base do governo funcionasse ou operasse de maneira coesa, nós teríamos votado o Orçamento no dia que resolvêssemos."

Saber quem é culpado pelo atraso pode ser importante política e moralmente e a autocrítica do governo, pela boca do ministro Tarso Genro, é um fato positivo. Mas isso não elimina um fato indisfarçável: o Executivo tem abusado amplamente das medidas provisórias e da faculdade de abrir créditos extraordinários.

Primeiro, o critério de urgência para a liberação das verbas é muito discutível. A medida provisória editada na quarta-feira, por exemplo, destina-se a cobrir, entre outras despesas, a continuação das obras da sede do Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada de Porto Alegre. Destina-se também ao custeio de ações de inteligência e comunicação da Presidência da República e à modernização dos processos de monitoramento e avaliação de projetos de investimento pelo Ministério da Fazenda. Essas e outras ações podem ser necessárias, mas não são urgentes, no sentido usado para justificar o recurso a um processo legislativo extraordinário.

Em segundo lugar, o governo está abrindo créditos extraordinários com base num orçamento inexistente. A proposta de Lei Orçamentária não foi aprovada e, portanto, o acesso a esses bilhões equivale a um saque a descoberto.

Saques desse tipo são permitidos, na falta de orçamento, apenas para as despesas de custeio indispensáveis à operação mínima da administração pública. Isso não inclui - para dizer o mínimo - a maior parte dos objetivos listados nas medidas provisórias. Quanto às estatais, contempladas na última medida provisória, são evidentemente capazes de operar e mesmo de investir sem depender, neste momento, das provisões contidas no Orçamento-Geral da União.

A preocupação do Executivo é obviamente de outra natureza. Seu objetivo é apressar o maior volume possível de dispêndios no primeiro semestre, para escapar das limitações legais do período de eleições.

A ânsia de gastar para conquistar votos vem pondo em risco a meta fiscal fixada para 2006. O superávit primário obtido no primeiro bimestre ficou em cerca de 50% da média observada entre 2001 e 2005. Vários economistas, inclusive técnicos do governo, têm chamado a atenção para o risco de se perder o controle orçamentário, se o Executivo não assumir, desde já, uma atitude mais prudente.

Executivo e Legislativo devem à opinião pública uma demonstração de maior respeito às boas normas financeiras e administrativas. Nada justifica o atraso da votação do Orçamento pelos parlamentares. É vergonhoso o País não dispor, quase no fim de abril, de uma programação de receitas e despesas para o poder público federal. Mas nada justifica, também, o recurso indiscriminado às MPs pela Presidência da República. E não há como disfarçar a impropriedade da abertura de créditos extraordinários na atual circunstância.

De um lado, o Executivo tem agido como se pudesse legislar unilateralmente sobre matéria orçamentária. De outro, o Congresso tem procedido como legislar sobre receitas e despesas do poder público não fosse uma de suas principais atribuições - uma função e um direito característicos das modernas democracias ocidentais. O abuso de um lado espelha o desleixo do outro e ambos são igualmente injustificáveis.