Título: Banco de DNA contra o crime
Autor: Robson Pereira
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Metrópole, p. C7

Idéia é reunir material de vítimas, bandidos e desaparecidos e, com isso, ajudar a resolver casos

A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), ligada ao Ministério da Justiça, está trabalhando na criação de um banco de dados de DNA com informações genéticas de vítimas e criminosos, além de parentes de pessoas desaparecidas em todo o País. A primeira parte do projeto, a montagem da rede de laboratórios responsável pelas análises, já foi concluída. Dezenas de técnicos e peritos estão sendo treinados e a fase de licitação dos kits para exames começou.

Segundo o secretário Luiz Fernando Corrêa, o objetivo é dar à polícia maior poder de investigação e de produção de provas, além de contribuir para a elucidação de um grande número de crimes de autoria desconhecida. "O Estado precisa estar aparelhado para dar respostas mais rápidas à sociedade, principalmente nos crimes de morte", afirma.

PRIVACIDADE

No total, serão utilizados 16 laboratórios, a metade construída no âmbito das polícias estaduais, em convênios com a Senasp, formando a Rede Nacional de Genética Forense. A maior parte dos laboratórios já tem condições de abastecer o banco de dados de DNA, mas alguns aspectos polêmicos precisarão ser enfrentados antes que isso aconteça. Ao contrário do que ocorre em outros países, como Argentina, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos, entre outros, o Brasil não tem uma legislação específica sobre banco de dados genéticos de seres humanos, o que certamente será motivo de intensos debates, não apenas no Legislativo e no Judiciário (Veja abaixo), mas na área da bioética e da privacidade individual.

"Temos plena consciência de que colher dados genéticos significa uma invasão muito grande na privacidade do cidadão", admite Corrêa. "Estamos nos preparando para enfrentar o debate sem paixões, mas com elementos técnicos e informações consistentes", acrescenta. Atualmente, um grupo de especialistas trabalha nos aspectos legais do projeto. O receio do secretário é de que "discussões mal conduzidas" prejudiquem o andamento do programa.

Para evitar polêmicas "antes da hora", o banco de dados genéticos vai contemplar em sua fase inicial apenas os casos que "não envolvam riscos de violação à privacidade", conforme explica o diretor do Instituto Médico Legal do Rio, Roger Ancillotti, ferrenho defensor da Rede Nacional de Genética e do Banco de Dados de DNA.

Os primeiros dados genéticos a integrar o banco serão de pessoas mortas em circunstâncias violentas (criminosos ou não) ou cujos corpos não puderam ser identificados pelos meios tradicionalmente utilizados, como impressões datiloscópicas, arcadas dentárias ou pelo reconhecimento oficial por parte de familiares.

De acordo com um levantamento feito pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, nos últimos 15 anos a Polícia Civil do Rio registrou uma média mensal de 1.737 casos com "tipificação provisória" (corpos encontrados sem identificação, ossadas e mortes suspeitas).

DESAPARECIDOS Um ponto sobre o qual integrantes do projeto acreditam que não haverá problemas de natureza legal é o recolhimento de material genético de pais que tiveram filhos desaparecidos. "Com o banco de dados de DNA, uma criança desaparecida no Rio poderá ser localizada na Bahia", explica Ancillotti.

Em São Paulo, há pouco mais de um ano funciona o Caminho de Volta, um programa criado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) com o apoio da polícia e com objetivo de localizar crianças e jovens de até 18 anos. Até agora cerca de 250 famílias cederam sangue e outros materiais genéticos para a formação de um banco de dados de DNA. Os resultados antes eram comparados apenas com dados genéticos de crianças e adolescentes vítimas de morte violenta, mas uma decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo deu à polícia paulista autorização para a realização de exames de DNA também em menores que vivem em abrigos públicos e não possuem nenhuma filiação definida.

De acordo com a coordenadora do programa, Gilka Fígaro Gattás, a própria Justiça se encarrega de enviar as crianças para o recolhimento do material genético e há o compromisso de o DNA ser utilizado exclusivamente com o objetivo de localização dos pais. "Esta é uma questão muito séria e precisa estar respaldada por um amplo debate ético", defende.

Ela entende que a questão das crianças recolhidas aos abrigos é bem diferente da dos adolescentes que vivem nas ruas. "Uns não têm a menor idéia de quem são seus pais e anseiam por encontrá-los, enquanto os outros simplesmente fugiram de casa e não querem ser encontrados pelos familiares." Apesar de funcionar há mais de um ano, o programa ainda não conseguiu aproximar filhos e pais. "O número de amostras ainda é muito pequeno", diz a coordenadora.

Ancillotti observa que, apesar de popularizados com os testes de paternidade, os exames de DNA com fins criminais ainda são raros no País. "É uma novidade, mas é inevitável que venha a ocorrer em um futuro próximo, assim como as polêmicas. Hoje precisamos de uma autorização da vítima ou do agressor para colher amostras de pessoas vivas, mas do morto não, pois ele pertence ao Estado", afirma Ancillotti. Ele reconhece, no entanto, que o País precisa de uma lei específica e diz que "chegou a hora de o legislador começar a se interessar por isso e definir claramente quem estará obrigado a ceder material e em que casos".

O diretor do IML do Rio admite que, "vencida a barreira legal", o banco venha a ser abastecido também com análises de DNA de vítimas, suspeitos ou mesmo criminosos condenados pela Justiça. O exemplo mais utilizado nesse caso são os crimes de estupro em série, cuja autoria somente é descoberta após um grande número de vítimas.

"A partir do material recolhido da vítima, será possível montar um banco de dados de agressores potenciais", explica Ancillotti. "Quanto mais cedo tivermos os laudos de DNA da vítima e do agressor, mais cedo chegaremos à autoria e com provas irrefutáveis." Desde 2003, ele vem recolhendo material de cadáveres não identificados, cujas análises genéticas já poderiam abastecer o Banco de DNA nacional.