Título: O modelo que veio dos presídios
Autor: Fábio Mazzitelli
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Metrópole, p. C1,3,4

Depois que adolescentes ficaram em prisões, eles trocaram o simples pai-nosso pelas orações típicas dos CDPs

Ninguém sabe ao certo a origem da reza na Febem. É possível que ela tenha começado, ou se fortalecido, com a transferência de jovens da instituição para presídios, prática utilizada algumas vezes pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB). Foi o que sugeriu um dos "faxinas" da UI-9, Aloísio. "A reza veio lá dos Centros de Detenção Provisória (CDPs). Primeiro, para o (circuito) grave. Depois, para o (circuito) médio", disse.

A adoração ao crime organizado fica clara na apropriação da imagens. O milenar símbolo yin-yang é a representação do PCC, freqüentemente estampado em cortes de cabelo, tatuagens e desenhos feitos pelos adolescentes.

Os desenhos de Valcir, o tatuador da unidade, viraram moda entre os adolescentes. Ele tem um bom traço e jeito para trabalhar de maneira improvisada. O próprio Valcir carregava na nuca o yin-yang do PCC, desenhado no cabelo. Curiosamente, ele o raspou no dia em que saiu da Febem. Foi desinternado, como dizem. Deixou o complexo na companhia da mãe, sorridente e de roupas novas, sem alusão ao crime.

Dentro da unidade, as referências a facções criminosas eram feitas até mesmo nas salas de aula. No início do ano letivo, um professor de História trabalhou com os adolescentes o poema No Meio do Caminho, de Carlos Drummond de Andrade, instigando os internos a falar de seus problemas e, principalmente, seus sonhos.

"Achei curioso. Dei aula em várias unidades e os alunos estão manifestando sempre o desejo de paz, justiça e liberdade. É interessante como todos têm os mesmos anseios", disse, surpreso. Por trás da tríade "paz, justiça e liberdade", um detalhe que o professor não sabia: é o lema mais divulgado do PCC.

Em outra ocasião, quando recolhi assinaturas dos adolescentes para cursos profissionalizantes, mais uma vez a facção criminosa foi lembrada. Ao firmarem as inscrições, dois jovens desenharam um revólver com as iniciais do lema (P.J.L.) em letras estilizadas, ao lado do próprio nome. Ao ver a cena, um coordenador da segurança lamentou. "Essa história de PCC começou de um tempo para cá. Antes, não tinha essa de faxina, de voz. Era todo mundo igual e a reza era só pai-nosso."

Ainda havia a reza regular, antes das refeições. A porta do refeitório era fechada pelos jovens, que não admitiam a presença de funcionários. O líder caminhava entre as mesas e discursava, misturando referências às famílias e palavras de apoio e união. Em seguida, todos rezavam o pai-nosso e a ave-maria, em voz baixa. Ninguém se atrevia a comer antes disso.

O código de conduta cultivado pelos adolescentes, que orientava as relações entre eles, fazia vítimas dentro do grupo. Em geral, por questões morais. Jovens que estivessem fora da linha ética dos "faxinas", que reproduziam modelos de cadeias, eram excluídos.

Um adolescente, de 18 anos e corpo de 15, foi renegado porque os líderes haviam descoberto que fora dali, no "mundão", ele tivera relações sexuais com outro homem. Outro, de 14 anos, deixou o convívio após ter sido flagrado, por um "faxina", se masturbando em dia de visita, o que não era permitido.

As lideranças dos adolescentes podiam também determinar se haveria oficina cultural, dizer se estava permitida a ida às aulas ou autorizada a conversa com "funças", apelido nada carinhoso dos funcionários.

"Hoje, é idéia zero com funça", ouvi em muitas ocasiões.

REDE DA DISCÓRDIA O funcionamento da unidade, que dá prioridade a questões de contenção, reforça os traços do sistema prisional.

Na tarde de 1º de fevereiro, foi instalada uma rede de proteção no pátio, medida de segurança que provocou o rompimento do diálogo dos internos com funcionários e deu origem a um intenso mal-estar na UI-9.

Para entender o porquê dele, é preciso compreender o espaço de circulação dos internos na unidade. São duas casas grandes, separadas por um pátio, no qual fica uma quadra. No prédio de entrada, duas salas de aula pequenas e um quarto com banheiro, além da área administrativa. Nos fundos, depois do pátio, ficam o refeitório, o lavatório, dois banheiros e salas de TV e pingue-pongue.

Naquela tarde, a rede branca, de náilon entrelaçado - como àquela usada no futebol, para a rede de um gol - cobriu todo o pátio, presa nos telhados e alambrados, como forma de impedir que os jovens subissem neles e se comunicassem com as unidades vizinhas, a UI-17 e a UI-39.

Mas a estratégia da rede antiescaladas tinha furos. Literalmente. No fim do dia, alvo de linhas com cerol e arremessos de cadeiras de plástico, a rede já estava furada em 12 pontos.

Na noite de 12 de fevereiro, 11 dias após sua instalação, a rede foi arrancada pelos jovens. À mão. A decisão foi tomada pelos líderes. Todos foram convocado para ajudar.

De cima dos alambrados e de cadeiras arrastadas ao meio do pátio, os internos ignoraram os avisos da equipe de segurança e colocaram a rede abaixo, arrastando junto uma viga de madeira e quebrando algumas telhas.

A retirada da rede intensificou o já tenso ciclo de sanções. Em boletim de ocorrência, os internos foram acusados de "depredação de patrimônio público e tumulto generalizado com tentativa de rebelião", de acordo com o diretor da unidade.

Pior castigo para os jovens viria em 14 de fevereiro, quando foram acordados pelo Grupo de Intervenção Rápida (GIR), apoio especial da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) à Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, a que a Febem está vinculada.

O diretor da UI-9 havia chamado o GIR para uma revista geral, ocasião em que os internos são levados para o pátio à força, na mira de armas de alto calibre, com munição de borracha, e cães treinados. Despem-se e sentam no chão, de cueca ou nus, enfileirados e de cabeça baixa, em cena vexatória.

As ações do GIR eram chamadas oficialmente de "retomada das normas de convivência". A base do grupo fica instalada de forma permanente no complexo, na antiga UI-7.

A UI-9, com freqüência, pedia esse apoio especial. Em 14 de fevereiro, o resultado da operação do GIR foi assim descrito no livro de ocorrências da unidade: "Às 7h30, realizamos revista geral na unidade (...) Nessa operação, foram encontrados, entre os beliches e os cobertores, 19 barras de ferro com características de espeto (...)"

Para encontrar as barras de ferro durante a revista, o diretor Carlos forçou um interno - que fora isolado dos demais no dia anterior por ter se masturbado em dia de visita - a apontar o esconderijo das armas. O jovem foi acordado a tapas, na cabeça e no rosto. "Vagabundo, levanta assim", esbravejava Carlos, enquanto o estapeava e o obrigava a colaborar.

PERÍODO DE REFLEXÃO Dentre as sanções, foram impostos seis dias de isolamento no quarto. Nesse período, conhecido como tranca, os internos não tiveram direito a sair do dormitório nem para comer, tomar sol ou ir às aulas. No fim do quarto dia de isolamento, os internos foram "perdoados" e puderam sair do castigo. Mas foram mantidas as demais sanções, que incluíam a proibição por 30 dias de visitas das namoradas e de atividades externas, como futebol de campo.

O período de reflexão, como são chamados tais isolamentos, não dera resultado. Três dias depois de os internos saírem da tranca, em 20 de fevereiro, dois adolescentes subiram no alambrado para se comunicar com a vizinha UI-39 e se fizeram de surdos diante do diretor, que foi ao pátio e ordenou, em vão, que descessem.

Instantes depois, o grupo especial da SAP era chamado de novo. A cena se repetia. Desta vez, com mais violência.

Adolescentes que estavam no quarto quiseram bloquear a entrada dos homens e dos cães do GIR, pondo beliches atrás da porta. Depois de alguns instantes, o quarto foi invadido e os jovens tiveram de se despir e correr entre o grupo armado, numa espécie de corredor polonês, em que levaram borrachadas e coronhadas.

Após a operação, na qual foram encontradas duas facas artesanais, o diretor da UI-9 endossava a ação violenta do GIR e gritava de sua sala, indignado por ver sua autoridade desafiada. "Eles merecem levar paulada. Estão pensando que aqui é o quê? Colônia de férias? Eles vão ver quem é o gerente da colônia de férias."

Foi ordenada a transferência de um interno que havia subido no alambrado, reduzido o tempo da visita dos familiares no domingo seguinte e imposto aos jovens mais oito dias de isolamento no quarto, permitindo que saíssem só para as aulas. Nos últimos 15 dias de fevereiro, os adolescentes permaneceram trancafiados 12.

REVOLTA As punições tornam os jovens ainda menos sociáveis. Depois da segunda intervenção do GIR em menos de uma semana, um adolescente, habitualmente calmo, revoltou-se.

Da janela do quarto, inconformado, Edílson fez o seguinte desabafo: "Eu te juro que, se tivesse um 38, despejava tudo na cara do seu Carlos!" Depois, relatou agressões: "Estava pagando uma ducha (tomando banho) e nem vi ninguém subindo no alambrado. Quando o GIR entrou, fizeram a gente passar pelo corredor. Levamos botinada, deram com o cassetete na gente e, no final, tinha um cara com uma 12 na mão dando coronhada. O Marcos saiu pelado, levou um soco nas costas e depois foram em cima dele de novo."

Edílson estava internado porque matou um homem a facadas, por causa de uma rixa. Foi no interior. Pai de um recém-nascido, era, até então, um dos internos com melhor comportamento na unidade. Foi minha última conversa com ele. Não tive tempo de checar se realmente cumpriria a promessa de mudar de comportamento ou se era somente um desabafo de alguém que acabara de sofrer agressão.