Título: Metade tem sarna e todos fumam
Autor: Fábio Mazzitelli
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Metrópole, p. C1,3,4

Cada adolescente recebe 7 maços por semana e não há limites para vício, incentivado até pela direção de unidade

Adolescentes com coceiras pelo corpo e cigarro na boca, coçando-se e fumando de maneira compulsiva. A rotina na unidade em que trabalhei no Tatuapé reflete os principais problemas de saúde dos internos: escabiose (ou sarna) e tabagismo.

A sarna atingia quase a metade da população da UI-9, de 60 jovens. Alguns já tinham feridas na pele. "Mais de 20 meninos têm escabiose nesta unidade. É uma praga", atestou uma auxiliar de enfermagem que medicava os internos.

Obrigados a vestir o uniforme da instituição - camiseta branca, bermuda bege e agasalho azul ou vinho -, os jovens sofriam com a falta de limpeza e de separação das roupas, freqüentemente misturadas.

As frágeis condições de higiene da unidade colaboram para a propagação da sarna. O ambiente é dominado permanentemente por um cheiro agridoce. "Até eu já peguei sarna", disse um coordenador de segurança.

Sob a supervisão do Núcleo de Atendimento à Saúde da Criança e do Adolescente (Nasca), que funciona no complexo, o tratamento médico é precário. Diariamente, auxiliares de enfermagem visitam os adolescentes. Nessas visitas, porém, os jovens são divididos em grupos e nem todos os que precisam são atendidos.

Para o tabagismo, não se cogita tratamento. Pelo contrário. Praticamente todos os adolescentes da UI-9 fumam. Até quem não tinha o hábito antes da internação adere ao vício, seja pela facilidade de conseguir um cigarro ou pela idéia de que fumar acalma, incentivada pela própria direção da unidade.

Fumante inveterado, o então diretor da UI-9 distribuía cigarros aos jovens e, em 23 de janeiro, amarrou um isqueiro em uma grade do pátio. Dias depois, não havia mais isqueiro - acabou, diante do consumo voraz dos internos.

A entrada de cigarros é "direito básico". Cada adolescente podia receber sete maços por semana, durante visita da família. O acesso ao fumo nunca foi cortado, nem mesmo nos castigos. Aos jovens do interior, que dificilmente recebiam visitas, restava passar a semana pedindo cigarro emprestado ou fazendo pequenos serviços, como lavar peças de roupa de um colega, em troca do tabaco.

Quem defende o cigarro entre os internos diz que o fumo combate a ansiedade e reduz danos. "Muitos eram viciados em crack e outras drogas lá fora. Por isso a gente não pode tirar os cigarros", alegou um coordenador da segurança.

Em fevereiro, foi lançado pela Febem um programa de combate ao fumo dirigido aos funcionários. Quando o comunicado chegou à UI-9, convocando os fumantes para reuniões sobre o tema, virou motivo de gozação e foi desconsiderado.

Além do fumo tradicional, ao menos uma vez foi relatado uso de maconha. Conforme registro no livro de ocorrências, em 5 de fevereiro, funcionários sentiram um forte cheiro de maconha vindo do banheiro da UI-9.

Outro problema é a falta de espaço. Os 60 jovens dormem no mesmo quarto, com 24 metros de comprimento por 6 de largura. São 30 beliches e uma cama. A cama solitária é usada sempre que o número de internos extrapola a capacidade, fato comum. Na minha primeira semana de trabalho, a última de janeiro, havia 63 adolescentes na unidade. Quem sobrava dormia "na praia", ou seja, em colchões no chão.

DESCARREGO Havia um banheiro anexo ao quarto, com quatro duchas - duas quebradas -, um lavatório com quatro torneiras e três cabines com vaso sanitário. Levando-se em conta que todos os adolescentes tomavam banho no mesmo horário, as instalações beiravam a insalubridade.

À noite, com todos no mesmo ambiente, era compreensível ocorrer distúrbio. No livro de ocorrências da UI-9, foram relatados três nos 32 dias em que trabalhei na unidade.

Em um deles, logo depois de ser trancafiado no quarto após revista geral, um jovem que tomava remédio indicado por psiquiatra passou mal e saiu da unidade carregado.

Na madrugada de 1º de fevereiro, Valdir (também nome fictício) - interno baixo e troncudo que não se envolvia em confusão - teve uma explosão. Os colegas contaram que, gritando, ele levantou e arrastou beliches. Para segurá-lo, foram precisos quatro internos.

Depois, rezaram e apelaram para palavras de exorcismo, acreditando que Valdir estivesse possuído. Os coordenadores de segurança registraram o fato no diário da unidade da seguinte maneira: "Por volta das 0h30, o jovem Valdir sofreu um distúrbio (recebeu entidade espírita), deixando os jovens exaltados e receosos. Com o barulho e movimento no dormitório, o grupo de apoio posicionou-se à frente da UI ficando de prontidão até as 3 horas."

Na manhã seguinte, Valdir estava normal. Mas os demais internos, impressionados, pediram um culto religioso. Uma igreja evangélica promoveu sessão de "descarrego", prestigiada por 60 dos 63 jovens. Valdir foi o centro das atenções do culto. Foi o único tratamento que recebeu.