Título: Jovens rezam pelo crime na Febem
Autor: Fábio Mazzitelli
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Metrópole, p. C1,3,4

Repórter conta o que viu no mês em que trabalhou como agente educacional no Complexo do Tatuapé

Os internos, de mãos dadas, formam dois círculos no meio da quadra. No menor, só os líderes, ou "faxinas", grupo de 15 jovens que puxam os gritos rodeados por outros 45, que integram o círculo maior. Todos os adolescentes participam da "reza", que se inicia com um pai-nosso e termina com palavras de exaltação ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e ao Comando Vermelho (CV). Cumprido diariamente no Complexo do Tatuapé, o ritual fervoroso mostra a cultura do crime organizado no cotidiano dos internos da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem).

Entre 23 de janeiro e 24 de fevereiro, trabalhei como agente educacional na Unidade de Internação 9 (UI-9) do Tatuapé e acompanhei o dia-a-dia do complexo, na zona leste. O local é o maior centro de internos do Estado: abriga 20% do total de menores infratores privados de liberdade.

Na época, em 17 unidades, havia cerca de 1.300 adolescentes. A rebelião da semana passada destruiu duas dessas unidades, a UI-14 e a UI-23, e 131 internos foram transferidos para a antiga Penitenciária Feminina, ao lado do complexo.

Há grandes diferenças de perfis dos internos dentro das UIs, embora a lei exija que se faça uma criteriosa separação por idade, compleição física e gravidade da infração. Na unidade em que estive, havia desde meninos primários de 14 anos, dependentes de crack, até maiores de idade, homicidas reincidentes.

Integrante do apelidado "circuito médio" do Tatuapé, a UI-9 deveria abrigar somente internos cumprindo medida de internação pela primeira vez na vida, por causa de infração de gravidade média, como furto ou roubo sem arma de fogo.

Para internos reincidentes e infratores graves, caso de alguém que cometeu homicídio, ficava reservado um conjunto de sete unidades - entre elas as duas destruídas, desativadas anteontem - conhecido como "circuito grave".

No primeiro dia de trabalho, durante a apresentação do diretor-geral aos novos agentes educacionais, ouvi do responsável pelo complexo algo que resumiria a situação: "Há sete unidades sob nosso controle. As outras dez estão com problemas, com perfil de cadeia", disse.

Na UI-9, como nas prisões, há uma rígida hierarquia entre os internos: os novatos têm de se submeter às lideranças da unidade. Os 15 "faxinas" distribuem a comida, cuidam da limpeza e decidem sobre quando e o que conversar com os funcionários. Dois são eleitos os "vozes", líderes máximos da unidade, que, entre outras funções, dão a palavra final sobre punições aos que desrespeitem os códigos de conduta.

Nesse contexto, destacava-se João (nome fictício, como todos os usados neste texto). Jogava como centroavante no time da UI-9 e era também "voz" da unidade. Em 3 de fevereiro, quando participava de um treino no campo de futebol, viu sua mãe chegar e abriu um sorriso. Ela trazia a decisão judicial que lhe dava liberdade. João recebeu abraços e cumprimentos dos colegas. A maior saudação, entretanto, foi no pátio interno, no meio da quadra. Como já ocorrera em outras oportunidades, a proibição da reza de apologia ao crime foi ignorada.

Em homenagem ao líder, formaram os círculos, entoaram o pai-nosso e iniciaram o coro: "Guerrilhar sempre/Vencer às vezes/Desistir jamais/Um por todos/Todos por um/Unidos venceremos/15-3-3/PCC/3-21/ CV/ Boa!/ Boa!/ Boa!"

Em toda reza, os "gritos proibidos" são alternados entre os "faxinas" e os subalternos, de modo que cada grupo fique com uma parte do hino. Cantá-lo é obrigatório em momentos de despedida. No fim, todos se unem para gritar o "boa", repetidas vezes. "Boa" é uma palavra-chave para os jovens. Significa "liberdade" ou "fuga". É uma espécie de senha para a felicidade. Diariamente, se ouve o ritual em um ou mais pontos do complexo, principalmente no fim de tarde e início de noite.

Na UI-9, mesmo com a prática proibida, a reza era entoada no momento em que os adolescentes a julgavam necessária, sobretudo quando um "irmão" deixava a unidade - em liberdade ou transferido. No ritual, a fisionomia dos jovens, até dos mais tranqüilos, se modificava com os gritos de guerra - como se estivessem se preparando para uma batalha.