Título: Democracia no conceito petista
Autor: Suely Caldas
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Economia & Negócios, p. B2

Depois de 21 anos de regime militar fechado, poder centralizado e instituições em frangalhos, o Brasil começou a conviver com a democracia. Foi um aprendizado difícil, com erros e acertos, próprio de um país que desaprendera a viver em liberdade. Um erro: o desejo sufocado de descentralizar o poder político-econômico acabou por levar o Legislativo, em 1988, a aprovar uma Constituição irreal, voluntarista, que logo precisou ser reformada. Só nos anos 90 o governo e a sociedade começaram a olhar para as instituições como instrumento de avanço para um novo estágio de democracia, capaz de proteger o cidadão, defendê-lo contra a má ação de governantes escolhidos de forma equivocada pelo eleitor. Para serem fortes as instituições precisam agir com independência em relação ao poder do governante transitório e seu único foco deve ser o interesse coletivo da população. Sem dúvida, hoje o quadro institucional é bem melhor do que era nos anos 80, mas há ainda muito a caminhar. E não só. Há que vigiar para impedir que governantes arrombem as instituições e destruam avanços alcançados.

No domingo 26 de março, publiquei neste espaço artigo intitulado Democracia ferida, em que sugeria ao ainda ministro Antonio Palocci que apurasse as responsabilidades pela violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa junto à Caixa Econômica Federal (CEF) e ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) - duas instituições a ele subordinadas e devassadas politicamente de forma escandalosa. No dia seguinte, o País foi surpreendido com a notícia de que fora Palocci, pessoalmente, o verdadeiro mandante da quebra do extrato bancário do caseiro. O hoje ex-ministro decepcionou todos os que nele acreditaram, no seu jeito humilde, manso e habilidoso no trato político com o presidente Lula, o PT, o Congresso, a oposição, os empresários, o mercado financeiro aqui e no exterior, os que admiravam seu talento no comando da economia.

Dentro do PT, Palocci parecia uma andorinha solitária, apartada da revoada de ministros e dirigentes partidários que, desde o início do governo, tentaram aparelhar o Estado, impor retrocessos aos avanços institucionais conquistados. Engano. Palocci arrombou as portas da CEF e do Coaf, tentou fazer o mesmo com a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), tudo para montar uma versão mentirosa com o objetivo de desmoralizar o caseiro e se manter no cargo de ministro. Não importa se Francenildo estava ou não com a verdade. Palocci tentou o vale-tudo, o caminho ilícito. Apesar disso, recebeu elogios rasgados do presidente Lula, na despedida.

A lógica do PT em relação a valores éticos e democráticos é confusa, por vezes hipócrita. Já no seu início, o governo Lula tentou aparelhar o Estado com a criação de um conselho sindical para jornalistas e outro para atividades culturais, com o propósito de controlar e coibir o que não fosse de seu agrado. A reação imediata e indignada de jornalistas e produtores de cultura liquidou com os dois projetos. A primeira versão da reforma universitária do então ministro da Educação, Tarso Genro, foi uma explícita tentativa de submeter a comunidade universitária (pública e privada) e o pensamento acadêmico a conceitos e propósitos do governo, uma invasão ao livre debate - intrínseco ao ambiente acadêmico - só vista no regime militar. Novamente a reação de educadores levou Tarso Genro a recuar e a preparar uma segunda versão, felizmente ainda não aplicada. O PT parece querer impor uma volta da centralização do poder em áreas essenciais ao livre exercício da democracia.

Não é prática do PT separar o privado do público. Seus dirigentes imaginam que a vitória eleitoral lhes dá o direito de ocupar a máquina do governo com milhares de quadros, a maioria despreparada para as funções que ocupam, gerando justa insatisfação de funcionários de carreira e prejudicando a gestão pública. Com a derrota de Marta Suplicy na eleição municipal de 2004, muitos petistas que serviam à Prefeitura de São Paulo migraram para o governo federal e empresas estatais. Só no Executivo foram nomeados 20 mil DAS (cargos comissionados de indicação política e livres de concurso).

Importantes para melhorar a qualidade de nossa democracia, as instituições retroagiram no governo Lula. Nascidas com autonomia para fiscalizar e regular serviços públicos sem ingerência do poder político, as agências reguladoras são hoje completamente submissas ao ministro da área e suas diretorias, leiloadas entre partidos aliados. Ao reclamar com os ministros da Fazenda e da Justiça contra a omissão do Coaf no caso valerioduto, a deputada Denise Frossard (PPS-RJ) descobriu que quase todo o quadro funcional desse conselho é formado por DAS. "Esta é uma função tipicamente de Estado, não de governo, como são o Exército e a Justiça, não pode estar sujeita à influência e a pedidos de favores de governantes transitórios. Por isso, o Coaf silenciou no caso valerioduto e foi tão ágil contra o caseiro", afirma Frossard.