Título: Pais neuróticos, filhos em terapia
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Vida&, p. A26

Dificuldades no aprendizado, como distração, cada vez mais são encarados como uma doença a ser tratada

Mau aluno é um tipo raro hoje em dia. Criança desobediente, então, nem se fala. Adolescente desinteressado é porque ainda está na terapia. Agora, o que não falta são disléxicos, portadores de transtorno de déficit de atenção, hiperativos, depressivos, disgráficos e uma série de pacientes precoces para tratamentos de variados outros distúrbios que cada vez mais entram no vocabulário de pais e professores. O que não seria problema, não fosse o fato de que muitos deles, na verdade, não são nada disso. E, segundo pesquisas e especialistas, fazem tratamentos e tomam remédios sem necessidade.

"A psicopedagoga me chamou e disse que minha filha não tinha nada", conta a consultora comercial Elizete Batista da Silva. A filha, Taís, de 13 anos, foi levada para a profissional por causa do baixo rendimento e da falta de atenção em sala de aula - isso quando os pais se separaram. "A coordenadora da escola disse que ela tinha dificuldades de aprendizagem. Eu estava preocupada. No fim, percebi que ela só achava as aulas chatas e estava triste. Ela preferia brincar, como eu mesma quando tinha a idade dela."

O fenômeno do qual Taís é mais um exemplo tem nome: "medicalização" ou "patologização" do fracasso escolar. Em outras palavras, uma tendência de atribuir determinadas características - desatenção, desinteresse, falta de concentração, inquietação, desobediência ou notas baixas - a origens físicas. Indicam-se pílulas ou consultas como soluções mágicas para corrigir o comportamento que está um pouco diferente daquilo que, se pensa, seria normal. A conseqüência é um excesso de tratamentos e remédios.

"Enxerga-se a diferença como doença. Aí, procurando, com critérios subjetivos, encontra-se de tudo. Há um excesso muito grande e observamos que todo mundo está com medo de errar", afirma a psicanalista Kátia Forli Bautheney, pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Em levantamento feito em 12 escolas da Grande São Paulo, Kátia encontrou números que comprovam sua percepção: a cada 35 crianças, 10 são levadas para diversas terapias. E apenas um terço delas precisava mesmo disso.

Nos consultórios psiquiátricos e pediátricos, os excessos estão nas prescrições. No Programa de Habilitação Cognitiva e Novas Tecnologias da Inteligência da Faculdade Ruy Barbosa, em Salvador (BA), 58% das crianças encaminhadas com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDHA) tomavam remédios. Após um diagnóstico mais elaborado, verificou-se que apenas 20% delas tinham de fato o problema. "O resto tomava um remédio forte, que tem efeitos colaterais, sem nenhuma necessidade", explica a psicóloga Taya Soledade, que analisou 101 pacientes.

"Nesse monte de criança diagnosticada com patologias, muitas coisas são malcriação mesmo", afirma o psiquiatra infantil Francisco Assumpção, diretor do Serviço de Psiquiatria Infantil e da Adolescência do Hospital das Clínicas da USP.

Acostumado a atender crianças que realmente precisam dos remédios e que podem se beneficiar deles, ele conta que é comum pais chegarem ao consultório já pedindo a receita. "Se você nega porque vê que o filho não precisa, eles não aceitam e procuram outro médico. É muito simplista e fácil achar que uma pílula resolve tudo."

Assumpção explica que esses distúrbios são de difícil diagnóstico, e que mesmo entre os médicos, são poucos os especializados em psiquiatria infantil, os mais capacitados para o problema. Não por acaso, a venda de psicotrópicos no País subiu 930% nos últimos cinco anos, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Usuário de Medicamentos.

"Nunca se falou tanto em distúrbios, tirando a responsabilidade de pais e professores e banalizando uma questão que é séria", afirma a psicopedagoga e pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Juliana Nutt. "Isso porque continua existindo uma dificuldade da educação em lidar com alunos que desviam da norma. Todo mundo tem de ser igual, ter a mesma motivação e as mesmas dificuldades."

Na casa de Pedro Malerado, de 11 anos, a família inteira foi parar no consultório de uma psicóloga por ele ser um "menino bagunceiro", na definição da mãe, Sheila. "A escola indicou e nós fomos. Foi até bom para mim e para o pai dele tratarmos questões nossas. Mas, ele mesmo, era só bagunceiro, é naturalmente desligado. E a escola não está preparada para esse tipo de aluno", reclama. Hoje, Pedro descobriu que tem um problema de coluna.

Quem trabalha do outro lado, atendendo as crianças, faz ressalvas importantes. "Há escolas que não sabem lidar com o aluno diferente, aquele que foge mais do ritmo dos outros. Mas não podemos ignorar que muitas crianças têm problemas e se beneficiam de um acompanhamento sério, especializado. E as boas escolas já estão encaminhando apenas esses que precisam, que só têm a ganhar com diagnóstico e tratamento adequado", diz Sílvia Amaral, psicopedagoga e coordenadora do Centro de Aprendizagem e Desenvolvimento (CAD).