Título: O realista está pessimista
Autor: Eduardo Salgado
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Internacional, p. A22

Para um dos maiores intelectuais europeus vivos, nem Silvio Berlusconi nem Romano Prodi salvam a Itália do inferno

Giovanni Sartori, o cientista político italiano de 81 anos, tem um extenso currículo com passagens por várias das mais graduadas universidades americanas. Foi professor em Stanford, Yale, Harvard e Columbia e até hoje tem um apartamento em Nova York. Autor traduzido em mais de 30 idiomas, é uma referência mundial na área da ciência política. Com um inglês impecável e sempre de bom humor, Sartori falou ao Estado por telefone de sua casa em Roma sobre os desafios da Itália no século XXI e a disputa entre Silvio Berlusconi, o candidato da centro-direita, e Romano Prodi, da centro-esquerda, nas eleições de hoje e amanhã.

A economia italiana parece mais vulnerável à ameaça de países como China e Índia do que outras nações européias. A deterioração da competição internacional da Itália é uma ameaça à estabilidade política do país?

Considerando os resultados de tudo isso, certamente. Nenhuma economia ocidental comportará um índice de desemprego equivalente a 30%. No longo prazo, o fato de um país oferecer a mesma capacidade tecnológica com um custo de mão-de-obra 10, 20 ou até 30 vezes menor dá um resultado só: os investidores optarão pelo lugar mais barato. Como conseqüência, teremos o aumento do desemprego nas regiões mais industrializadas e ricas. Este problema é mais notável na Itália do que em outros países europeus por causa de sua formação industrial. Não somos especializados como a Alemanha, que constrói maquinário de alta tecnologia para exportação.

E a Itália poderá ser poupada do inferno?

Essa pergunta deveria ser feita a Dante (risos). A Itália tem muitas fábricas de sapatos e roupas. Mas o seu custo de fabricação é 10 ou até 20 vezes maior do que os fabricados na China.Tem muitas fábricas têxteis. É verdade que a Itália é muito frágil. Mais do que outros países europeus.

Neste contexto, quem seria a pessoa mais indicada para governar o país: Silvio Berlusconi ou Romano Prodi?

Nenhum dos dois.

Por quê?

Berlusconi está interessado em administrar os seus bens. O país é uma entidade abstrata para ele. De acordo com seus conceitos, o que é bom para ele é o melhor para o país. A sua estratégia é muito simples. O ministro da Fazenda italiano gostaria que a Europa usasse tarifas alfandegárias (para se proteger dos produtos asiáticos). E, provavelmente, a longo prazo, talvez essa seja a alternativa. Vai depender da amplitude das perdas trabalhistas. Não vejo Prodi focado neste problema. A sua maior preocupação é sustentar a sua coalizão multicolorida. Ele não observou a questão com precisão. E sua maior preocupação é vencer as eleições. Por isso, sobre essa questão, manteve-se calado. No entanto, por trás de seu silêncio, há pessoas se questionando se deveriam perguntar a ele ou a Dante.

A centro-esquerda argumenta que o modelo escandinavo - a combinação de inovação, competitividade e o sistema de bem-estar social - seria uma boa alternativa para a Itália. O que o sr. acha?

Inovação e competição são palavras mágicas. Agora fazer uma afirmação é diferente de concretizá-la. Ninguém é contra os resultados desse modelo. Se você é capaz de produzi-lo é uma outra questão. O modelo escandinavo teria problemas porque seu foco é no social. E quem pagará pelo social? Nesta economia globalizada, produtores não podem aumentar o custo de seus produtos se eles são vendidos mundialmente.

Considerando que a situação na Itália é pior do que em outras partes da Europa, o sr. acredita que uma resposta para esses problemas virá da Itália?

Temos uma União Européia. Tomemos o problema com a China, este é mais difícil de resolver. O custo da mão-de-obra chinesa é muito barato. A China tem uma reserva de vários milhões de camponeses que aceitam trabalhar por um preço baixo. Será que cada país, individualmente, poderá resolver o 'problema China'? Deve haver uma política européia para apurar o que precisará ser feito. Isso é muito simples. Sem trabalho, temos altos índices de desemprego e um rombo no orçamento. E na Europa, temos que manter as pessoas vivas. Se fosse na África, seria diferente. Por isso, é um círculo vicioso que nunca tivemos antes. O laissez-faire começou com a escola de Manchester. A Inglaterra era capaz de invadir o resto do mundo e o resto do mundo não conseguia invadir a Inglaterra. Agora, a direção mudou e o resto do mundo invade a Itália e o resto da Europa. Numa pequena escala, podemos nos adaptar, buscar mais eficiência e inovação. Nesta escala, de uma economia globalizada, os remédios dogmáticos da economia tradicional, que afirmam que tudo é combatido pela competição, não conseguem mais se manter de pé. A competição ajudou o Ocidente quando possuía uma vantagem maior. Hoje temos um problema novo.

E o protecionismo é a resposta?

Se você achar uma melhor, me diga. Os Estados Unidos, quando ameaçados, sempre usaram impostos de importação para se proteger. Na Europa, todas as economias desenvolvidas cresceram com o protecionismo. A história ainda não produziu uma nova cura. Agora, se é possível ter sucesso no futuro contra esta ameaça (asiática), que não tem antecedentes, não sei. Mas é claro que os economistas devem acordar e não usar fórmulas fora de contexto, como eles têm feito.

Berlusconi chama os promotores e juízes de vermelhos, de pessoas ideologicamente motivadas. É a Justiça que é de esquerda ou é Berlusconi que tem muitos problemas com a Justiça?

As duas coisas. Mas o Berlusconi é mais envolvido com ações ilegais do que os magistrados e juízes são vermelhos. Certamente, tivemos uma politização mais forte na ordem judicial italiana. O que não quer dizer que eles sejam 100% vermelhos. Admito a existência de uma visão tendenciosa. Mas no caso de Berlusconi, qualquer sistema judiciário o teria processado. Ele violou todas as leis possíveis de um comportamento político e econômico correto.

O governo Berlusconi é o mais longo desde o final da II Guerra Mundial. Se ele saísse hoje, quais teriam sido suas maiores conquistas?

O governo dele é o mais duradouro porque mudanças ocorreram no sistema eleitoral. Ele foi o único a vencer as eleições de 2001 com uma maioria colossal. Tem estado totalmente no controle do Parlamento. Foi incrivelmente eficiente em criar leis para o proteger a si mesmo, seus negócios, para defender seu bem-estar. No mais, ele tem sido indiferente. Está realmente empenhado em defender-se e fazer o seu marketing pessoal. Não temos nenhuma lei decente no controle da mídia. Todas as leis foram para proteger os bens de Berlusconi e (aplacar os resultados de suas) infrações. Cerca de 15 anos atrás, estava cheio de dívidas. Agora ele é a pessoa mais rica do país. Se você pagar todos os impostos, essa ascensão é impossível.

Por quê?

Berlusconi não paga seus imposto, é tudo off-shore. Me diga o nome de uma pessoa que enriqueceu pagando todos seus impostos.

Bill Gates?

Sim, mas há uma explicação. Bill Gates vende um produto fenomenal. Já Berlusconi construiu parte de Milão com um dinheiro que ninguém sabe de onde veio. Tudo isso é misterioso. Por que ele está sendo indiciado? Porque tem 50 ou 100 empresas no exterior. Alguns americanos, como Bill Gates, enriqueceram porque inventaram algo novo. Berlusconi não inventou nada.

O que Berlusconi deveria ter feito nos últimos cinco anos?

Ele não é um homem de Estado. É um empresário e continuou sendo como primeiro-ministro. Quer ganhar dinheiro, poder. Temos uma enorme reforma constitucional, imposta sobre o país, que é monstruosa. Como conseqüência, 90% da Constituição não funciona. Tudo isto aconteceu porque Berlusconi precisava de apoio político. A reforma constitucional é muito séria. Temos esperança de derrubá-la com um referendo. De resto, ele agravou a questão da dívida, que está em 106% do Produto Interno Bruto, uma das maiores do mundo. Temos um enorme déficit público que ele inventou. A sua administração pública tem sido ridícula. Vende propriedade pública, mas não usa o dinheiro para abater a dívida.

Caso vença, o sr. acha que Prodi conseguirá governar?

Prodi herda uma situação de desastre. O mínimo que ele poderá fazer é ser sério. Os europeus não acreditam que ele tenha ido bem como presidente da Comissão Européia (o braço executivo do bloco que Prodi dirigiu entre 1999 e 2004). Não acho que tenha ido bem como primeiro-ministro (Prodi liderou o país de 1996 a 1998). De qualquer forma, os italianos darão um voto contra Berlusconi, não a favor de Prodi. Temos de aceitar que há pessoas que adoram Berlusconi e pronto. Outros são de esquerda e é isso. Os eleitores que podem mudar o voto são os mais moderados. Nas eleições (de hoje e amanhã), podem decidir dar um voto menos maligno.

E Prodi é menos maligno que Berlusconi?

Sim, nunca conheci alguém que fosse mais maligno do que Berlusconi e olha que eu sou velho.

Se Prodi vencer, o sr. acredita que ele conseguirá manter sua coalizão unida?

A coalizão de centro-esquerda não é administrável. Isso não é culpa de Prodi, mas sim do sistema eleitoral, que produz estas enormes, multicoloridas e litigiosas coalizões. Quando foi primeiro-ministro, Prodi não vez nada para melhorar as leis eleitorais. Prodi merece, deste ponto de vista, a coalizão com problemas. Ele é um economista, não tem grandes qualidades políticas. Não tem grandes instintos políticos além do de sobrevivência.

Há quem diga que a política italiana está, lentamente, transformando-se num sistema bipolar. O sr. concorda?

O sistema tem mudado. As leis eleitorais mudaram nos anos 90 e o partido dominante do passado, a Democracia Cristã, se dissolveu. Desde então, temos um sistema bipolar no seguinte sentido: há dois comportamentos eleitorais, um de direita e outro de esquerda. E os governos são construídos não no centro, como era o caso no passado. Agora são ou centro-esquerda ou centro-direita. O problema é que temos muitos partidos, que enfraquecem as coalizões. Mesmo Berlusconi teve esse problema. Mas como é muito comum, a esquerda é mais fragmentada que a direita. Com isso, o sistema é mais prejudicial para um governo de centro-esquerda. Na Itália, ao contrário do Brasil, não temos partidos de aluguel. Os partidos pequenos são fortes, mas temos algo pior. Partidos com uma pequena parcela do total de votos têm um poder enorme para chantagear. Com isso, muitas coalizões não têm uma capacidade real para governar.

Se Prodi vencer, quais deveriam ser as suas três principais prioridades?

Neste momento, há muitas promessas tipicamente eleitorais, que são, obviamente, gentis: fortalecer a economia, combater o desemprego, colocar o orçamento em ordem, incentivar o pagamento de impostos, o que é um assunto delicado na Itália porque as pessoas não estão acostumadas com isso. Esses são os tradicionais slogans pré-eleitorais. Mas Prodi não encontrará um centavo no orçamento..(e depois de alguns segundos em silêncio)...você está impactado com o meu pessimismo?

Pessimismo ou realismo?

Sou um realista, não um pessimista.

Os índices de fertilidade na Europa, especialmente na Itália, são tão baixos que a população poderá diminuir significativamente nos próximos 50 anos. O sr. acredita que haverá incentivos para sul-americanos com cidadania italiana se estabelecerem na Itália?

A Europa tem uma população velha. Mas não estou do lado do argumento que diz que para resolver o problema você deve ter mais filhos. O planeta está perto do desastre ecológico total devido, basicamente, à explosão demográfica. E nessa equação, a única variável é que podemos controlar é a população. Não podemos solucionar problemas como o da previdência (poucos trabalhadores fazendo contribuições e um número grande de aposentados) com mais e mais crianças. Acabaremos ficando sem água. A minha recomendação é reduzir o tamanho da população. Já somos 6 bilhões e, com esse nível de consumo e mais gente, poderemos explodir, ter um desastre ecológico. O clima já está mudando significativamente. A questão ecológica é uma das que mais me preocupam. Devemos permitir que as pessoas trabalhem até os 70 anos. A tecnologia também pode ajudar muito.