Título: 'País vive uma deterioração de valores'
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Nacional, p. A9

Após 60 anos de política, Brossard culpa militares por destruírem o conceito de autoridade e ironiza Lula, 'o pai e mãe dos pobres' 'País vive uma deterioração de valores' Após 60 anos de política, Brossard culpa militares por destruírem o conceito de autoridade e ironiza Lula, 'o pai e mãe dos pobres'

Descalabro, decadência, completa deterioração do conceito de autoridade. É com esses termos que um dos mais experientes políticos da nossa história, o ex-ministro da Justiça Paulo Brossard, define hoje o Brasil - um País que, além do espetáculo diário de maus hábitos políticos, chega a meados de abril "sem ter sequer um orçamento aprovado para o governo funcionar".

Aos 82 anos, do alto de seis décadas de estrada, em que combateu duas ditaduras, a de Vargas e a dos generais, e fez oposição a meia dúzia de presidentes, Brossard avisa que "não é possível esperar muito dos políticos numa nação onde todos os partidos foram completamente extintos por duas vezes seguidas, num período de 15 anos". Mas fora da política o quadro não é melhor. Ele arrisca uma das explicações para isso: "O mais nefasto, o mais duradouro dos efeitos do autoritarismo do regime militar foi a deterioração do conceito de autoridade."

Aposentado como ministro do Tribunal Superior Eleitoral, advogando em Porto Alegre e cuidando de sua fazenda em Bagé (RS), Brossard se preocupa com um País "onde o presidente usa a televisão todos os dias, dizendo o que queira dizer" e acha que ele pode, com isso, "incendiar o País". Ele não aceita falar sobre o Judiciário - mas fez, para o Estado, uma análise da sociedade brasileira, marcada "pela indiferença para com os valores fundamentais".

Vivemos hoje, no Brasil, uma crise institucional?

Acho que o problema não é só do mundo político. Houve uma erosão de regras, princípios, comportamentos. Mas eu pergunto: por que a zona política, área aberta e conflituosa, haveria de ficar imune a um fenômeno social que é de ordem geral?

A que o sr. atribui essa situação?

Desde suas origens, nosso sistema republicano adotou um Estado federativo, com olhos voltados para os Estados Unidos. Nosso sistema presidencial, pela soma de poderes que uma pessoa, qualificada ou não, passou a deter, foi agravando o sistema de relação entre Poderes. Em 1964 (com o golpe militar) chegamos à exacerbação presidencialista, em que o presidente reformava a Constituição por atos que ele chamava de emendas constitucionais. Esse desequilíbrio instalou um litígio permanente. No sistema parlamentar isso não ocorreria.

Então é uma crise política?

Não só. Vi outro dia na televisão o presidente reclamar que ainda não tem orçamento para tocar o governo este ano. E já estamos em abril! É uma coisa inacreditável. Não faz sentido que um governo governe sem orçamento. Se ele for aprovado agora, restam apenas oito meses para executá-lo. É possível governar o País dessa maneira?

A culpa é da má vontade das oposições?

Não sei. A mim me parece que os governistas, tão solícitos em render homenagens a sua majestade, tão generosos e dedicados, não dão a isso a menor importância.

Temos hoje políticos muito ruins?

Há um fenômeno admitido por todos os que têm observado a vida política: de legislatura em legislatura o nível cai. Já tivemos na presidência da Câmara figuras como Antonio Carlos, Nereu Ramos, Bilac Pinto, Adauto Lúcio Cardoso. Já nos tempos atuais... Mas o Parlamento, seja bom, regular ou medíocre, é um reflexo da sociedade. Um parlamentar é um cidadão comum que já pensa ou faz isto ou aquilo e que, eleito, passa a fazer o mesmo na tribuna ou no plenário. E foi eleito por quem? Pelo bispo? Não, pela sociedade.

A sociedade elege seus políticos há muito tempo.

Ao ser eleito, em 1946, para a Constituinte (ao fim da ditadura Vargas), entrei preocupado para a Câmara onde a maioria vinha do Estado Novo. Ali havia dois ex-presidentes, Arthur Bernardes e Getúlio. Havia antigos ministros. Mas a Constituinte foi moderadora, muito prudente. Valores e posturas tinham um peso maior que os interesses partidários. E hoje? Viu-se nesta quarta-feira a aprovação do relatório na CPI dos Correios: quase houve luta armada.

Como se explica a queda de qualidade da ação parlamentar?

No regime militar tivemos, em 1965, a extinção de todos os partidos. Por que fizeram isso? Não foi por motivo nobre, foi por motivo torpe. Havia pré-candidatos às eleições seguintes e era preciso eliminá-los da vida pública. É a triste, mas verdadeira realidade.

Aí começou a decadência?

Sim. No ciclo militar, até a diferença do primeiro presidente para o segundo já era enorme. Impuseram dois partidos, Arena e MDB, por um ato de força. As pessoas eram espremidas dentro deles, como lingüiça. Tinha até gente que queria ir para o partido do governo e foi forçada a ir para a oposição. Mais à frente, extinguiram de novo os partidos políticos! Duas vezes em 15 anos? É demais! Isso foi uma das causas da degradação parlamentar. Depois, o que veio? Quem tivesse dinheiro para alugar uma sede, botar um letreiro, alugar um alto-falante e uma camionete, era candidato. Porque esses novos partidos não eram partidos, e as pessoas, individualmente, passaram a fazer as vezes daqueles partidos. Foi desastroso para a vida do País. O mais nefasto, o mais duradouro dos efeitos daquele regime, de absoluta desordem institucional, haveria de ser a deterioração do conceito de autoridade. Autoritarismo é uma coisa, autoridade é outra. Aquela esbórnia de autoritarismo, de arbítrio, virou isso, a deterioração do conceito de autoridade.

O sr. vê uma forma de sair dessa situação?

Um presidente que usa a televisão todos os dias, dizendo o que queira dizer... Alguém mais tem esse direito? Vou lembrar aqui um fato. O dr. Vargas, na Voz do Brasil, construiu uma popularidade que não tinha nada que ver. Isso ficou marcado. Era o pai dos pobres. Agora temos o pai e a mãe dos pobres.

A OAB está preparando material para um possível impeachment do presidente. Isso faz sentido?

Acho que os fatos relacionados com o chefe de Estado são muito sérios, muito graves. Porque aquela história do 'não sabe, não viu, não ouviu', não é possível que o homem seja cego, surdo e mudo, não saiba de nada. E vamos fazer justiça: ele pode ser tudo, menos cego ou surdo. Ao contrário, é pessoa de grande inteligência. Quantos meses temos, mais oito meses? Nesse interregno, ele pode incendiar o País, pôr tudo contra tudo. Mas não vejo possibilidade real (para um impeachment). Matéria sobra. Se eu tivesse de decidir, pensaria duas, três vezes.