Título: Paixão, sorte, comédia e razão
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Espaço Aberto, p. A2
A guerra - já dizia Karl von Clausewitz, general prussiano, autor do clássico Da Guerra - é uma continuação do comércio político, um modo de torná-lo mais eficaz, porém por outros meios. O presidente Luiz Inácio seguramente se referia a este comércio ao cunhar a frase "estou perdendo os generais, mas vou ganhar a guerra", após a renúncia-demissão de Antonio Palocci, conforme afiançou o "ex-primeiro-ministro" José Dirceu em seu recente périplo por Buenos Aires. A ciência política também diz que a guerra é uma parte de paixão, uma parte de sorte e uma parte de razão. O candidato à reeleição espera contar com os dois primeiros elementos da guerra, paixão e sorte, que, por natureza, são incontroláveis. Mas, caso avoque a razão, amargará estrondosa derrota. A não ser que, no Brasil, um fator ainda não catalogado na arte da guerra funcione a favor de Lula: a comédia. Esse gênero da dramaturgia, de tão corriqueiro, a cada semana ganha uma peça no palco político.
O autor da última encenação é o ex-ministro da Fazenda. Garantir que convidou o então presidente da Caixa Econômica, Jorge Mattoso, tarde da noite, para tratar de escritórios da estatal no Japão e nos EUA é cômico. Dizer que recebeu, nesse encontro, os extratos bancários do caseiro Nildo, mas não lhes deu muito valor, triturando-os no dia seguinte, é risível. Reafirmar que o assessor Marcelo Netto e o secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça, Daniel Goldberg, presentes em sua casa na mesma noite do dia 16, não tomaram conhecimento da quebra de sigilo do caseiro é um escárnio. (O que estariam fazendo na casa do ministro?) Mas há co-autores da comédia semanal. Um deles, Paulo Okamotto, sindicalista no cargo de presidente do Sebrae, encarna o próprio bobo da corte. Negar na CPI dos Bingos ter cuidado das finanças de Lula, depois de lembrar, faz pouco tempo, ter pago uma conta do presidente no valor de R$ 29 mil, é uma palhaçada.
Não dá também para conter o espanto quando o presidente da República, no trono da onipotência, tenta passar ao largo da crise, como se nada soubesse, até parecendo cantarolar um hit musical destes tempos de baixaria: "Tô nem aí, tô nem aí... pode ficar com seu mundinho, eu tô nem aí... não vem falar dos seus problemas que eu não vou ouvir." O brasileiro, como se sabe, é complacente, generoso, capaz de perdoar as mais graves ofensas, volúvel e, às vezes, tendencioso. Mas a hipocrisia tem limites. Gera reação em cadeia, principalmente quando hipócritas agridem a índole de cidadãos tentando inculcar-lhes platitudes, banalizações e generalizações, como a de que somos todos imbecis, patetas e corruptos. Não é isso que querem nos fazer crer os pizzaiolos que dançam a tarantela nas casas congressuais? Será que Lula acredita mesmo que a comédia do cotidiano político, em que até uma dança atípica foi entronizada, o ajudará em sua reeleição?
Estará enganado se assim pensa. Primeiro, vale frisar que, de tão grotescas, as comédias perdem a graça. Segundo, não adiantará muito a Lula querer se esconder nos camarins. Por mais que se esforce, continuará a ser personagem central de espetáculos exibidos cada vez mais sob um cenário de arrogância e despudor. A tática presidencial de procurar o esconderijo não convence. Ao longo da História, o homem procura tornar prazerosa sua existência, construindo castelos e se refugiando em redomas que intermedeiam e até substituem estímulos sensoriais. Foge das lutas da planície para se refugiar no planalto. Corre das ruas para a casa. Na área política, essa necessidade se torna mais aguda. Mandatários privam-se de contatos com o exterior, locomovem-se em circuito fechado, auto-enclausuram-se num mundo irreal e, solitários, mergulham na solidão. Ao plasmarem seu universo artificial, os donos do poder põem fé numa realidade paralela, em versões estapafúrdias e falsas perspectivas. Seria essa a explicação para os "não sei, nunca soube, fui traído", atribuídos a Lula? Urge também avisar que certos governantes inventam a própria solidão. Quando governava o Rio de Janeiro (1979-1983), Chagas Freitas procurava se escudar num amuleto, singela quadra a ele oferecida por um eleitor: "Comigo não há nada, não há nem pode haver; se houver, não surte efeito e, se surtir, não tem valor." Pelo visto, Lula também se vale desse dito.
Se a comédia não der votos a Lula, os petistas poderão contar, ainda, com a paixão e a sorte. Quanto à paixão, lembre-se que se tem esvaído nas ondas da corrupção escancarada. O amor à causa ganhou ares de amor à coisa (e que coisa, hein?). Apaixonados, é claro, ainda pululam, principalmente os grupos incrustados nas malhas do poder e os contingentes amaciados com uma colher de feijão, um pacote de arroz, uma sopinha rala, uma bolsa de R$ 50. Quanto à sorte, é bom que se diga: não será tão difícil a vitória de Lula quanto ganhar na Mega-Sena. Mas há um detalhe que pode afastá-lo da reeleição: o jogo de apenas seis números. Lula terá de gastar em milhões de cartões para ganhar a sorte grande. Jogar apenas com seis números significa dizer as mesmas e chatas metáforas de futebol, crer que é ainda Papai Noel, diminuir a base social de apoio, ver os generais dando baixa de exércitos destroçados, enfim, apostar que a infelicidade nacional bruta ainda está ao seu lado.
Resta explicar para onde vai a razão. Resposta: para o lado do bem, do certo, da expressão crível, do perfil limpo. Para ganhar a guerra, os contendores haverão de brandir estas armas. Narrar sem enganação as histórias de sua vida e suas experiências. Demonstrar os valores que formam a crença. Expressar propostas viáveis. E, por fim, lidar com os campos de percepção das pessoas, que diferem entre classes e conjuntos organizados, os quais, por sua vez, recebem influências de culturas locais e das circunstâncias. O pano de fundo que acolherá o conjunto dessas variáveis é a convicção de que, no teatro brasileiro do poder, a maior parte dos atores é pós-graduada em artes cínicas.