Título: Faculdades atraem aos poucos alunos de vizinhança pobre
Autor: Renata Cafardo e Roberta Pennafort
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2006, Vida&, p. A23

O torneiro-mecânico Flávio Luiz da Conceição viu a "horta de um japonês de onde as crianças roubavam rabanete" virar a Universidade de São Paulo (USP) da zona leste. Ele mora no bairro de Jardim Keralux, com casas de madeirite e ruas de barro, vizinho ao novo campus da instituição. Fora o asfalto na via principal, pouco mudou na vida das pessoas de lá desde que a USP Leste começou a funcionar no ano passado. Flávio, porém, tratou de mudar a sua.

Ele faz Licenciatura em Ciências da Natureza, uma novidade da USP Leste. O curso formará professores com conhecimentos de Biologia, Física, Química e Matemática. Flávio passou na primeira lista de aprovados da Fuvest. A escola fica dez minutos a pé de sua casa. "Tenho até vergonha de dizer que estudo na USP, parece que eu quero aparecer", diz.

Dos 1.020 alunos que entraram neste ano nos dez cursos do campus, 250 moram na zona leste. É um número alto (24,5%) se comparado aos 10% que costumam ingressar na Cidade Universitária. Há outros 80 que vieram de municípios próximos, como Guarulhos, Poá, Suzano e Itaquaquecetuba. Mas Flávio é o único que mora no mesmo bairro da USP Leste.

A presença de universidades de excelência ajudam a despertar o interesse pelo ensino superior nas comunidades carentes do entorno. Mas ainda são poucos os exemplos de vizinhos com sucesso acadêmico. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) surgiu depois da imensa favela da Maré, no mesmo bairro (ver texto ao lado). Uma tese de mestrado defendida no mês passado mostra que, entre 1998 e 2004, só 92 vestibulandos da Maré conseguiram ingressar na UFRJ, que tem 35 mil alunos.

"Predomina na instituição a idéia de que seu papel é produzir pesquisas para a sociedade e não se relacionar com o entorno", diz o pesquisador Jailson de Souza, do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), que estuda a inserção de carentes em universidades. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) há 33 alunos moradores da favela da Rocinha, que tem 200 mil moradores e fica a cinco minutos do campus.

Flávio, como outros estudantes pobres do Rio, é exceção porque participou de cursinhos comunitários gratuitos e com professores voluntários. A USP tinha um projeto desses na zona leste em 2005, mas para 2006 ainda não há previsão de reinício.

"Quando eu vi a USP aqui pertinho, acreditei que podia dar certo", diz Flávio, de 31 anos. Ele nunca pôs os pés na Cidade Universitária. E ficou surpreso ao saber que alunos da sua turma já tinham visitado o Museu do Louvre, em Paris.

"Deve ser caro estudar aí", diz Inácia Guimarães, de 14 anos, que também mora no Keralux. Como boa parte dos vizinhos, ela nunca entrou no campus nem imagina que se trata de uma universidade pública. Poucos no bairro sabem o que acontece lá dentro. "Parece que é uma faculdade. Eu queria que minha filha estudasse Medicina", diz a dona de casa Ana Claudia Vieira.

A previsão para a USP Leste é chegar a 20 mil alunos. Não há curso de Medicina, nem de nenhuma outra área em que a USP já atuava. O diretor Dante de Rose Junior diz que há projetos para deixar a universidade mais perto do Keralux. Planejam-se programas como escolinha de esportes, e os alunos já fazem projetos direcionados à população.

O diretor acredita que, com o tempo, vai haver tantos alunos da zona leste quanto de qualquer região da cidade. Neste ano, 50 moradores da região a mais foram aprovados, na comparação com o vestibular anterior.

BOLSAS

Todos os cerca de 500 estudantes moradores de comunidades pobres, vizinhas ou não, da PUC-Rio recebem bolsa integral. "Passava na porta de ônibus e dizia para minha mãe que um dia estudaria lá", diz Wagner Sabóia de Abreu, de 20 anos, que mora na Cidade de Deus. A mãe é costureira e o pai está desempregado. Wagner largou o ensino técnico para investir na preparação para o vestibular e conseguiu uma vaga num cursinho comunitário.

Depois de aprovado - e antes de ganhar a bolsa - ficou dois anos inadimplente. A mensalidade é de cerca de R$ 1 mil. No ano passado, o jovem foi escolhido para estudar na École Centrale, em Marselha, na França, por meio de um programa de duplo diploma da PUC. "Entre as pessoas com quem convivi, algumas escolheram caminhos mais fáceis, mas eu insisti."