Título: Lição de realismo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/04/2006, Notas e Informações, p. A3

O embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Roberto Abdenur, deu uma preciosa lição de realismo ao dizer, no Fórum Econômico Mundial que se realizou em São Paulo, que o Brasil deve abandonar as ilusões em relação à China e que "parceria estratégica pode ser um conceito enganoso". Comentários como esse tornaram-se especialmente valiosos, nos últimos anos, porque o bom senso tem sido um bem escasso na diplomacia do governo petista. A aproximação com a China e com outras economias emergentes pode criar boas oportunidades econômicas, ninguém duvida. Mas uma condição para aproveitar oportunidades com o menor custo possível é evitar a confusão entre romantismo e negócios.

Essa confusão tem marcado a estratégia internacional do Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva insiste na pretensão de redesenhar o mapa da economia mundial, contando para isso com a cooperação de outros países emergentes. Essa bandeira tem sido agitada em todos os movimentos de aproximação com países como a China, a Índia, a África do Sul e a Rússia, classificados, pela diplomacia brasileira, como companheiros numa grande campanha pela reforma.

A ambição de mudar a geografia econômica pode ser muito razoável para um país de grandes possibilidades, como o Brasil. É o que a China, de certa maneira, vem realizando, graças a uma política de transformação econômica mantida por mais de duas décadas. A Índia vem sendo guiada por um objetivo semelhante. Mas a ambição dos dois países, claramente, é alcançar e consolidar o status de potência de primeira classe e seu projeto não inclui nenhuma grande aliança do Sul contra o Norte.

"A solidariedade da China", disse o embaixador Abdenur, "está restrita ao Grupo dos 20, que é uma aliança ad hoc." Essa descrição é verdadeira, mas não abrange todo o quadro. China e Índia aliam-se ao Brasil e a outros sócios do G-20 para conseguir acesso aos mercados agrícolas do Primeiro Mundo e para combater os subsídios europeus e americanos. Mas o Brasil, assim como outros produtores eficientes, pode expor seu mercado à competição de outros exportadores. China e Índia pretendem manter barreiras importantes.

A mesma diferença de perspectiva tem caracterizado outras alianças do Brasil. A integração sul-americana pode ser uma prioridade para a diplomacia brasileira, mas outros países da região estão mais empenhados em conseguir acordos com os Estados Unidos e a União Européia. Aproveitam as oportunidades que surgem na vizinhança, mas não põem suas fichas políticas preferencialmente na América do Sul.

Índia e China, comentou Abdenur, não se consideram países em desenvolvimento. Preferem apresentar-se como potências mundiais. Na diplomacia, até podem apresentar-se como países em desenvolvimento, quando se trata de reivindicar tratamento diferenciado. Mas não fazem disso uma bandeira.

Os erros de perspectiva da diplomacia Sul-Sul são muitas vezes cômicos. O embaixador poderia ter mencionado, se estivesse dissertando sobre o assunto, as expectativas do governo petista em relação à Rússia. A Rússia, segundo os critérios da assessoria internacional do presidente, é um país geograficamente do Norte e geopoliticamente do Sul.

Valeria a pena, literalmente, recordar a famosa pergunta de Garrincha ao técnico da seleção, depois de um briefing sobre como seria o jogo com a Rússia: já falaram com os russos? É evidente que eles não se consideram uma potência emergente e muito menos um país em desenvolvimento. A Rússia é membro do G-8 e ostenta, de forma indisfarçável, o status de potência de primeira classe. Sua economia pode ter deficiências importantes, mas seu estoque de conhecimento e de capital humano não tem paralelo nos países em desenvolvimento. Acima de tudo, é uma ilusão imaginar que os russos se disponham a participar, juntamente com o Brasil e outros países em desenvolvimento, de uma grande aliança para dobrar os países do Norte.

O Brasil poderá mudar a geografia econômica, sim, se conseguir para si um lugar entre os desenvolvidos. Mas, para isso, precisará de uma política de longo prazo de modernização econômica e de inserção eficiente nos mercados globais. Não se alcança nenhum desses objetivos com ilusões sobre alianças imaginárias.