Título: Hora de acabar com a farsa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/04/2006, Notas e Informações, p. A3

Dê-se ganho de causa ao PT no seu recurso à Mesa da Câmara para anular a votação do relatório final da CPI dos Correios que atestou a existência do mensalão. Coloque-se no seu lugar e aprove-se, se for regimentalmente possível, o relatório alternativo dos representantes do partido na comissão, segundo o qual o mensalão não existiu. Restituam-se ainda os mandatos dos deputados Roberto Jefferson e José Dirceu - e, de quebra, o do presidente do PP, Pedro Corrêa. Arquive o Conselho de Ética da Casa os dois últimos processos por quebra de decoro parlamentar, ainda na fila. E vote em seguida a sua autodissolução que, aliás, já começou.

Com esse conjunto de atos do mais acendrado realismo, a opinião pública finalmente será resgatada da condição de espectadora compulsória de uma farsa. De que adiantou, com efeito, os inquéritos parlamentares terem apontado 18 mensaleiros? Dos 9 cuja cassação o Conselho chegou a pedir - 4 renunciaram antes e 1 os próprios conselheiros absolveram -, o plenário sacrificou os 3 acima citados e salvou 7. O último deles, o ex-presidente petista da Câmara João Paulo Cunha, na mesma quarta-feira em que o relatório do deputado Osmar Serraglio foi aprovado por 17 dos 36 membros da CPI dos Correios.

Dizer que a Câmara perdeu a vergonha é dizer pouco - e chover no molhado. Pois, se fosse para escolher um caso exemplar de afronta ao decoro parlamentar e de escancarada apropriação de dinheiro sujo, na lambança identificada por aquela CPI e a do Mensalão, só poderia ser o de João Paulo. No comando da Câmara, favoreceu Marcos Valério numa licitação fajuta para a escolha da agência de propaganda que ficaria com a conta da Casa - o mesmo publicitário que fez a sua campanha para a presidência da instituição, o terceiro cargo na hierarquia do poder.

No dia 3 de setembro de 2003, o presidente da Câmara e o operador do mensalão tomaram café da manhã juntos. No dia seguinte, a mulher de João Paulo sacou R$ 50 mil da freqüentada agência do Banco Rural em Brasília - fora do horário bancário. Descoberto o lance, o petista inventou que ela tinha ido pagar uma conta de TV a cabo, cuja fatura devia ser quitada em Osasco, o feudo do então candidato a candidato ao governo paulista. Em sua defesa, esquecida a patranha da fatura, ele alegou que o saque foi ordenado pelo prestimoso tesoureiro do partido, Delúbio Soares. "Estava convicto de que o dinheiro vinha dos cofres do PT", jurou João Paulo. "Não peguei dinheiro de origem indeterminada, peguei na tesouraria do PT", caprichou no acinte.

No Conselho de Ética, coube ao deputado gaúcho Cezar Schirmer, do PMDB, relatar o seu processo. Produziu um parecer pela cassação, seguro de que, "por incrível que possa parecer", os próprios argumentos e papéis apresentados por João Paulo para se declarar inocente atestavam a sua culpa. Anteontem, disse em plenário: "De todos os processos analisados, a materialidade das acusações é a mais indiscutível e indubitavelmente comprovada." Podia ter ficado em silêncio que não faria a menor diferença. Menos de 30 dos seus 512 pares se dignaram ouvi-lo. Se fossem 300 - para usar o número com que Lula quantificou certa vez o total de "picaretas" no Congresso - também nada mudaria.

Para cassar um mandato são necessários 257 votos. No caso de João Paulo, ficaram faltando 48. Seja porque 256 deputados, protegidos pelo voto secreto, se manifestaram a seu favor, seja porque 30 ou não compareceram, ou se abstiveram. (Houve 7 votos em branco e 2 nulos.) Dessa vez, a companheira Ângela Guadagnin poupou os brasileiros de um replay da grotesca dança da impunidade. Tanto faz: a coreografia do espírito de corpo dos ditos representantes do povo foi rigorosamente cumprida. Antes da votação, decerto tranqüilo quanto ao seu desfecho, João Paulo se permitiu desfiar uma catilinária contra a imprensa, com fumaças de história e teoria da comunicação. E saiu dizendo que, apesar da absolvição, a mídia continuará a chamá-lo de "mensaleiro". Queria ser chamado do quê?

Enquanto isso, do outro lado da Praça dos Três Poderes, no palácio que o presidente da República só freqüenta a contragosto - dada a sua conhecida laborfobia -, a sua gente comemora, além da absolvição de mais um companheiro, o confinamento da indignação da sociedade ao Congresso. Os políticos são o que são. Mas, como sempre, Lula não tem nada com isso.