Título: "Ao Supremo cabe julgar princípios, e não pessoas"
Autor: Maria Fernanda Erdelyi
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2006, Nacional, p. A17

Peluso vetou depoimento do caseiro Nildo à CPI dos Bingos e diz que maioria não entende função do Judiciário

Antonio Cezar Peluso, ministro do STFEntrevistaO ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que se incomoda mais com críticas do que com sua consciência foge de seu papel. Ao STF cabe julgar princípios, e não pessoas. São as opiniões de um dos artífices do principal tribunal do País, o ministro Antonio Cezar Peluso, um juiz que não se incomoda de parecer antipático. O importante, afirma, é cada um cumprir o seu papel.

Único juiz de carreira do STF, Peluso julga controvérsias há 38 anos. Seu respeito pelos poderes constituídos não o impede de duvidar da eficiência de uma Constituição detalhista e analítica.

Peluso, que impediu o depoimento do caseiro Francenildo dos Santos Costa, o Nildo, na CPI dos Bingos, lamenta que a população não compreenda a função do Judiciário. Segundo ele, se as atividades do ministro da Fazenda não se relacionam com irregularidades que envolvem o jogo do bingo, o Judiciário não pode se colocar na arquibancada de uma torcida uniformizada para misturar alhos com bugalhos.

A seguir, principais trechos da entrevista com Peluso, a sexta de uma série com os ministros do STF feita pelo site Consultor Jurídico para o Estado.

Como o senhor reage às críticas por ter impedido o depoimento do caseiro Nildo na CPI dos Bingos?

Com a naturalidade que os ministros do Supremo têm de reagir diante das críticas. Os juízes não têm de se incomodar com críticas, mas tomar decisões de acordo com sua consciência. Críticas fazem parte do jogo democrático.

O senhor acredita que as CPIs ultrapassaram os limites legais?

Não é questão de acreditar. Em muitos casos o STF reconheceu que houve excesso.

Com as recentes decisões sobre pedidos das CPIs, o Supremo foi acusado de interferir no Legislativo e, portanto, na separação dos Poderes. O que pensa sobre isso?

Alguns comentários são expressões de divergências orientadas por pontos de vista político-partidários. Nenhuma decisão judicial contenta todo mundo. Há pessoas que manifestam discordância porque não conhecem. O leigo tem certa dificuldade para entender o alcance de uma norma constitucional e de uma decisão do Supremo. É a expressão de um inconformismo porque contraria anseios pessoais. E há outras críticas que perseguem objetivos políticos, pessoas que querem criar um clima de crítica ao papel que o Supremo exerce na interpretação da Constituição.

Como o senhor avalia a separação dos Poderes e a influência de algumas entidades, como a Igreja e a imprensa, na harmonia entre eles?

Essas entidades desempenham o papel delas dentro de um Estado democrático, fazem pressões que correspondem a projetos da sociedade. Isso representa a vitalidade do sistema democrático, onde esses organismos têm expressão e cada Poder leva em consideração nos limites das suas competências. O STF não pode se deixar levar na interpretação de uma norma por conta dessa pressão, mas o Congresso pode modificar uma lei diante da pressão.

Por participar mais das grandes decisões nacionais, há quem entenda que o Supremo governa. O senhor concorda?

Não se trata de governo do Judiciário. Trata-se de uma decorrência necessária do caráter analítico de uma Constituição que, em vez de se limitar a um conjunto de normas fundamentais e essenciais, resolveu abranger um espectro muito amplo de matérias. Dessa forma, toda vez que há controvérsia sobre essas matérias, elas levam, de algum modo, ao exame da Constituição. Por isso todo mundo acaba recorrendo ao STF.

A Constituição deveria ser mais sintética?

Uma Constituição mais sintética evitaria a sobrecarga do Supremo. Eu preferiria uma Constituição mais enxuta, menos sujeita a tantas emendas constitucionais, provocadas exatamente pelo fato de ela ser muito ampla. Sempre que há mudança na realidade, o Congresso se vê na necessidade de introduzir uma emenda.

O site Consultor Jurídico fez um levantamento sobre a constitucionalidade das leis e concluiu que a maioria delas é inconstitucional. Onde está o problema?

São vários fatores. Certa complexidade da própria estrutura analítica da Constituição. Se ela fosse mais simples, legislar seria mais fácil. Outro ponto é que no nível infraconstitucional quem legisla não é apenas o Congresso. Há outros órgãos nos planos estadual e municipal, onde há deficiências técnicas. Seria preciso que todos os corpos legislativos do País tivessem assessoria técnica de alta qualidade para evitar esses vícios. Esses são fatores que ajudam a explicar essa massa grande de inconstitucionalidade. Um terceiro fator está ligado à tradição cultural. Aqui se legisla muito porque se parte da crença de que tudo pode ser resolvido com uma nova lei. Às vezes depende de providências de caráter administrativo ou de outra ordem.

O Supremo julga mais princípios ou pessoas?

O STF é um tribunal de princípios. As leis são feitas para a realidade, e não para o mundo acadêmico. Muitas leis são criadas para mudar a realidade. É tarefa do tribunal ajustar a lei à realidade social. É o exemplo da Corte dos Estados Unidos, com pouco mais de 20 cláusulas constitucionais. Ela foi adaptando a interpretação dessas normas constitucionais à realidade. Houve época em que a Suprema Corte reconheceu que o negro não era sujeito de direito. A Constituição não mudou. Mudou a realidade. A norma continua a mesma, mas a interpretação mudou. Por isso a Constituição é dinâmica e a função dela é adaptar-se e responder às novas exigências dessa realidade.