Título: Conflito de interesses
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2006, Notas e Informações, p. A3

A decisão do delegado da Polícia Federal Rodrigo Carneiro Gomes, que conduz a investigação sobre a quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, de não ouvir no inquérito o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, se apóia em um argumento frágil. Numa atitude decerto inconciliável com a sua função, o ministro tomou a iniciativa de levar à residência oficial do seu então colega da Fazenda, Antonio Palocci, o criminalista Arnaldo Malheiros para que ele discorresse sobre "aspectos genéricos" da violação de contas bancárias - na inverossímil versão do ministro depois que a revista Veja revelou o encontro. O delegado Carneiro Gomes não vê nisso motivo para pedir o depoimento de Bastos.

Para ele, o inquérito trata da devassa da conta de Francenildo e o vazamento dos seus extratos. A reunião promovida pelo titular da Justiça ocorreu uma semana depois do episódio. A essa altura, portanto, o crime já havia sido cometido. As coisas não são tão simples, porém. Como há de saber qualquer estudante de direito, a apuração de um delito penal não se esgota no desvendamento do ato em si: o que vem depois também interessa, se houver razões para suspeitar, por exemplo, de que se tenha tentado acobertar a sua autoria ou outras formas de esconder a verdade. Segundo a Veja, surgiu no encontro a idéia de dar R$ 1 milhão ao funcionário da Caixa que assumisse a culpa exclusiva pelo delito.

Bastos desmentiu com indignação que isso tivesse ocorrido - e faz jus ao benefício da dúvida. Ainda assim, não poderia ser reprovada por excesso de zelo a autoridade policial que incorporasse aos autos do inquérito sobre um caso de tamanha gravidade e de tão estrepitosas conseqüências políticas o que a seu respeito pudesse dizer o ministro responsável por excelência pelo cumprimento das leis no âmbito da administração federal - o "local do crime" contra Francenildo. Isso ainda não é tudo. Está longe de ter sido esclarecido o papel de dois assessores diretos de Bastos no imbróglio. Sabe-se que o secretário de Direito Econômico da Pasta, Daniel Goldberg, estava na casa de Palocci, a chamado dele ou não, quando o presidente da Caixa Jorge Mattoso apareceu com extratos da conta arrombada.

Goldberg não teria visto os papéis, mas disse no inquérito que o ministro queria saber se seria possível abrir uma investigação sobre as finanças do caseiro com base em documentos levados a domínio público que indicariam incompatibilidade entre os valores da sua conta e os seus rendimentos. Depois de consultar o chefe de gabinete do Ministério, Cláudio Alencar, o secretário voltou a Palocci com uma resposta negativa. Não está claro quando o chefe de ambos ficou sabendo dessa tratativa. Ele alega que só ao voltar de Rondônia, dois dias depois, soube da violação da conta e da divulgação dos extratos. Mas uma nota da Justiça diz que, na véspera, "apesar das dificuldades" (de comunicação) "houve possibilidade de contato telefônico com Brasília" e o ministro pôde falar com "auxiliares no MJ".

A ocasião em que ele teve ciência dos fatos importa - e muito - tendo em vista as suas atitudes contraditórias logo em seguida. Quando os extratos vazaram e as suspeitas se voltaram para Palocci, a primeira reação de Bastos, além de cobri-lo de elogios, foi negar que mandaria a Polícia Federal investigar o assunto, para não colaborar com o que chamou de exploração política e ataque especulativo ao colega. Três dias depois mudou de idéia - e a partir daí passou a advogar junto ao presidente Lula a demissão do ministro. Nesse meio tempo, avisou que se demitiria se o secretário Goldberg fosse indiciado no inquérito. Por fim, o mesmo Bastos que afirmara não ter motivo algum para falar do escândalo ao Congresso tratou de pedir para fazê-lo com a máxima urgência.

Resulta claro disso tudo o conflito de interesses implícito na questão do testemunho do ministro. O aspecto mais óbvio é que a Polícia Federal responde a ele. Jamais um delegado o interrogará como a outro depoente ou o incluirá no seu relatório guiado tão-somente pelos fatos que tiver apurado. Mais importante ainda, se não for do próprio ministro a iniciativa de depor, só lhe restará demitir-se. Eis a que pode levar a idéia de plantar a suspeita de que Francenildo foi pago para desmentir Palocci sobre a casa onde nunca teria posto os pés.