Título: Ritual do século passado
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2006, Nacional, p. A6

Abstraindo-se a falta de educação e a inadequação política da reunião do presidente do Senado, Renan Calheiros, com a oposição no Palácio do Planalto, fazendo agenda própria no exercício da Presidência da República, sobram ainda impropriedades a mancheias nesse ritual de substituições constantes, rápidas e por mais das vezes desnecessárias, do presidente pelo vice ou seus seguidores na linha de sucessão.

A obsolescência do ato é a mais gritante delas. Até a expressão "linha de sucessão" remete a uma majestade desconectada do sentido mais moderno da vida em geral e das repúblicas em particular. A própria função de vice, hoje de grande serventia para a consecução de arranjos eleitorais, mas sem utilidade prática, é questionável. Mas isso é uma outra discussão, que inclui a necessidade de uma revisão permanente dos meios e modos de substituição do presidente diante de uma necessidade objetiva.

Sentar 15 minutos na cadeira presidencial não faz de ninguém um presidente e esta é uma obviedade que o mundo político insiste em ignorar, junto com o evidente anacronismo das homenagens e cumprimentos dirigidos ao substituto passageiro, como se ele estivesse de fato investido da delegação presidencial e não fosse uma figura de mero faz-de-conta, não raro passível de ações patéticas.

Há casos de vices efêmeros que pelo resto da vida se referem à equipe dos presidentes que os substituíram como "meus ministros" e há episódios vexatoriamente inesquecíveis como o do então presidente Paes de Andrade, que encheu de amigos o avião presidencial e foi comemorar o "cargo" na Mombaça natal.

Ontem o presidente do Senado esteve quase à altura do antecessor ao declarar solenemente que exerceria a Presidência com "responsabilidade e discrição", acrescentando: "As canetas manterão suas tintas intactas, porque só vou usá-las havendo absoluta necessidade."

Ora, havendo absoluta necessidade, o presidente da República estaria perfeitamente ao alcance ali na fronteira da Argentina, por intermédio de quaisquer instrumentos de transporte ou comunicação, do avião à internet.

Às cenas de solenidade inconsistente somou-se a expectativa, no dia anterior, acerca da possível substituição de Lula pela ministra Ellen Gracie - o que a tornaria a "primeira mulher a assumir a Presidência da República no Brasil".

Tal percepção de simbologia só não é mais jeca que a reação do presidente do Congresso fazendo questão de ficar para assumir o cargo enquanto Lula foi durante algumas horas à Argentina participar de uma reunião de chefes de Estado.

Tratar como interinidade de fato e de direito uma ausência do presidente do Palácio do Planalto - pouco importando se ele está na esquina, no Ceará ou do outro lado da fronteira - é tão antiquado quanto o substituto relâmpago incluir no currículo suas "passagens pela Presidência da República".

As exaltações no caso de Ellen Gracie ainda soam mais retrógradas porque vêm acompanhadas do mesmo ranço festivo que fez da sabatina da ministra no Senado um monumento ao machismo travestido de cavalheirismo.

Acaba a ministra sendo homenageada exclusivamente por "ser mulher" - uma contingência da vida, dada a composição da humanidade -, em detrimento da correta observação de seus atributos profissionais.

A presença de Ellen Gracie na Corte Suprema merece avaliação mais consistente, bem como a Presidência da República é posto a ser preservado de ligeirezas, egolatrias e mesuras chinfrins. São suficientes as cometidas pelos legítimos ocupantes do cargo.

Noves fora

A reunião dos presidentes de Brasil, Argentina, Venezuela e Bolívia em Puerto Iguazú acrescentou coisa alguma à questão essencial: a decisão de Evo Morales de fazer política interna à custa da quebra de contratos, em prejuízo dos investimentos e dos interesses comerciais do Brasil.

Morales agradeceu a "solidariedade" dos vizinhos, fez referência especial à compreensão do maior prejudicado, o presidente Luiz Inácio da Silva, e foi saudado com a deferência digna dos heróis. Como se o ato de voluntariosa demagogia representasse na verdade um gesto de libertação continental muito útil, indispensável mesmo, à integração latino-americana.

A se levar a sério o que foi dito ali, Brasil, Argentina e Venezuela estariam comprometidos a partir de agora em atender a todas as demandas da Bolívia - sejam quais forem, lesivas aos outros ou não - para ajudar o País a se livrar da pobreza atroz.

Uma retórica oca, extravagante e passadista, feita sob medida para não ser levada em conta pelos fatos. Estes serão tratados à luz da objetividade pela missão brasileira encarregada de destrinchar o problema na próxima semana em La Paz.

De acordo com um ministro que discutiu ontem o assunto longamente na Casa Civil, discretamente, longe das luzes da ribalta, a Petrobrás e o Itamaraty têm orientação para agirem com muito menos leniência.