Título: Bolívia vai auditar petroleiras e já fala em confisco
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2006, Economia & Negócios, p. B6

Autoridades bolivianas disseram quarta-feira que planejam examinar os registros financeiros das companhias energéticas estrangeiras e ameaçaram explicitamente, pela primeira vez, confiscar ativos das empresas se novos contratos dando maior controle ao Estado não puderem ser negociados.

De capacete, ao lado de policiais fardados, Andrés Soliz Rada, o ministro de Hidrocarbonetos, reiterou que as multinacionais têm seis meses para negociar novos contratos, muitos dos quais deverão aumentar dramaticamente a parte do Estado.

"Se as negociações não forem bem, poderemos ir para o próximo passo, a expropriação", disse, acrescentando que as companhias seriam compensadas.

Mas o primeiro passo, afirmou Soliz Rada, é uma auditoria dos documentos das empresas estrangeiras. "É hora de abrir as caixas pretas das companhias petrolíferas." O ministro deu a entrevista coletiva numa refinaria operada pela brasileira Petrobrás, a companhia que mais tem a perder na Bolívia.

Ali, assim como em outras instalações petrolíferas privadas, a polícia militar vigiava as entradas, revistando carros para garantir que nenhum documento fosse removido.

Funcionários bolivianos disseram que a entrevista destinava-se a tranqüilizar as multinacionais. Mas a iniciativa parece ter tido o efeito contrário e a mensagem foi inequívoca: o governo agora está no controle e as companhias podem aceitar ou não.

VENEZUELA O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que sonha em unir a América Latina como um contrapeso à influência dos EUA, visitou quarta-feira o colega boliviano, Evo Morales, para oferecer ajuda.

Num primeiro passo, auditores da Petroleos de Venezuela, a gigante petrolífera do país, visitaram três companhias estrangeiras na Bolívia e anunciaram que estarão envolvidos nas auditorias, disse um executivo de uma das empresas. Os venezuelanos também fornecem ajuda técnica às autoridades bolivianas e vai assinar um contrato para a construção de uma planta de separação de gás.

Autoridades bolivianas pareceram subestimar o impacto das medidas que Morales anunciou segunda-feira, tanto sobre seu próprio governo quanto para as companhias estrangeiras, particularmente para um país empobrecido de apenas 9 milhões de habitantes que ainda está longe de se tornar o gigante energético que deseja ser.

A Bolívia pode ter as segundas maiores reservas de gás da América Latina, mas grande parte de suas riquezas está longe de ser explorada. O país, sem saída para o mar, também tem canais de venda limitados.

É bem diferente da Venezuela, grande produtora de petróleo que tem pressionado as companhias petrolíferas à vontade, com poucas possibilidades de elas deixarem o país, graças aos altos lucros que podem ser obtidos. "Uma coisa é produzir petróleo a US$ 72 o barril e ter acesso a muitos mercados. Outra é produzir gás tendo apenas um mercado na região, o Brasil", afirmou Carlos Alberto Lopez, consultor de empresas petrolíferas estrangeiras.

PARCERIA O decreto põe a empresa energética do governo boliviano - Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, mais conhecida como YPFB - na posição mais proeminente. Sob o decreto de Morales, a YPFB deixaria de ser uma pequena empresa de auditoria para se tornar uma parceira em pé de igualdade com gigantes como a Repsol YPF SA, da Espanha, e a Total, da França.

O presidente da YPFB, Jorge Alvarado, que estava ao lado de Soliz Rada na coletiva, admitiu em entrevista que a estatal não tem dinheiro.

Indagado sobre como a empresa desenvolverá os campos de gás do país se o investimento estrangeiro evaporar, Alvarado disse ter certeza de que as companhias de fora continuam dispostas a permanecer na Bolívia.

"Quero ser sincero", disse ele. "A YPFB, por causa do modelo neoliberal, foi reduzida ao mínimo. Ela não tem recursos econômicos. Mas vemos que há muito interesse das companhias estrangeiras que querem investir no país."

As empresas estrangeiras, no entanto, expressam indignação cada vez maior com as medidas. Segundo informou a agência de notícias France Presse, o primeiro-ministro da Espanha, José Luis Zapatero, disse que a iniciativa pode afetar a assistência espanhola à Bolívia. Ele enviou uma delegação a La Paz para conversar com funcionários bolivianos.

Outras companhias consideram o arbítrio internacional ou uma batalha judicial.

A Câmara de Hidrocarbonetos da Bolívia, que representa as companhias, afirmou que o decreto poderá piorar o quadro unilateralmente para as empresas estrangeiras. O órgão disse temer que o país esteja abandonando a ênfase na importância dos contratos e investimentos.

"Do ponto de vista da câmara, as companhias não terão incentivo para continuar a desenvolver os hidrocarbonetos", afirmou em entrevista o presidente do órgão, Enrique Menacho.

A Petrobrás, numa carta do diretor na Bolívia para Alvarado, afirmou que, embora vá continuar operando no país, está preocupada com o decreto. Ele indicou que a companhia poderá adotar medidas legais para proteger seus investimentos.

Sob o decreto, o Estado teria direito a 82% da produção nos maiores campos, ante menos de 18% que as empresas aceitaram quando começaram a desenvolvê-los.

A YPFB também teria uma fatia majoritária de três empresas - Chaco, Andina e Transredes - que já foram estatais e hoje são operadas por companhias estrangeiras. A Petrobrás também parece estar perdendo o controle de duas refinarias, incluindo aquela onde Soliz Rada deu a entrevista.

Ontem, Morales e Chávez viajaram juntos para a Argentina e se reuniram com os presidentes brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e argentino, Néstor Kirchner.

GARANTIA Na coletiva de quarta-feira, Alvarado e Soliz Rada tentaram garantir que os atuais contratos com o Estado ainda têm segurança legal. Ao mesmo tempo, no entanto, eles sublinharam as novas medidas como um sinal de dignidade e soberania e reclamaram da falta de empregados bolivianos nas companhias estrangeiras.

"Dêem-me os nomes dos bolivianos na Transredes, na Chaco, na Andina", disse o ministro. Funcionários bolivianos também argumentam que as empresas petrolíferas estrangeiras, que investiram pelo menos US$ 4 bilhões desde 1997, já recuperaram seu dinheiro.

É uma afirmação que as empresas negam. O campo Margarita, por exemplo, operado pela espanhola Repsol com suas parceiras britânicas, teve um custo de desenvolvimento de mais de US$ 300 milhões.

"Só agora estamos entrando no mercado", disse um executivo estrangeiro que trabalhou no projeto. Ele não quis ter o nome divulgado, temendo prejudicar sua relação com o governo. "Como é possível dizer que o consórcio recuperou seu investimento na Bolívia?"