Título: Petróleo e governo boliviano mantêm relações perigosas
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2006, Economia & Negócios, p. B9

Conhecer o mundo das empresas de petróleo na Bolívia equivale a atravessar uma fronteira de negócios estranhos, operações condenáveis e fortunas instantâneas. Quem explica isso é o geólogo Luis Carlos Kinn, que foi alto funcionário da multinacional alemã Schlumberger, uma das grandes no ramo de energia. De volta a Bolívia, como vice-presidente de uma empresa que negocia com o governo uma parceria na exploração de gás, Kinn tornou-se um dos principais conselheiros do ministro de Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada.

Para ele, "é difícil entender a irritação dos bolivianos com as empresas de petróleo sem conhecer suas relações perigosas com diversos governos de nosso país". Kinn dá uma aula detalhada sobre grandes negócios do petróleo num país muito pobre, com instituições políticas frágeis, casos banais de mau comportamento e negócios nas altas esferas do Estado. A conversa não tem as cenas de ação do filme Siriana mas é superior em clareza e conhecimento do assunto.

Kinn fala de um anexo dos contratos de exploração de gás e petróleo, conhecido como Anexo D, que prevê artifícios formais para encobrir o pagamento de propinas a funcionários e lobistas, num clássico esquema de Caixa 2. "Sob a cobertura de um fundo de cooperação, ali se movimentava perto de US$ 2 milhões por ano, sem o menor controle", conta. Para não deixar pistas, esse dinheiro era batizado de "Fundo de Cooperação".

Entre os políticos, recorda que a Justiça autorizou a abertura de investigação contra três ex-presidentes - Jorge Quiroga, Sanchez de Losada e Carlos Mesa - por assinarem contratos de exploração com cláusulas que feriam a Constituição do país. "Os contratos deveriam ter sido submetidos ao Congresso, mas eles preferiram fazer tudo em segredo."

No plano dos negócios, ocorreram episódios intrigantes, diz Kinn. Para adquirir 50% dos direitos de exploração sobre os gigantescos campos de San Alberto, a Petrobrás desembolsou U$ 12 milhões pelos gastos operacionais - e nada gastou pela mercadoria mais preciosa, que são as reservas. Outro conglomerado levou o restante - a custo zero. Pela legislação em vigor na época, essas empresas deveriam pagar 50% das receitas em impostos, mas foram incluídas numa alíquota de 18%. "Pode-se estimar que o governo boliviano teve um prejuízo de U$ 500 milhões só com esse favor fiscal."

Com tais antecedentes, ele argumenta que o governo de Evo Morales tem razão em cobrar direitos sobre as empresas estrangeiras. Para ele, "a discussão de verdade não é nacionalização, mas preço". O geólogo acredita que os números anunciados até agora por Soliz Rada, em torno de US$ 8 por 1000 pés cúbicos, são parte de uma estratégia de negociação. Seu palpite é que será possível fazer um acordo em algum ponto entre US$ 4 e US$ 5. "A Petrobrás sabe que essa negociação também é de seu interesse", afirma. "A Bolívia precisa do Brasil para comprar seu gás. E o Brasil precisa da Bolívia para não pagar o preço do gás no resto do mundo, onde já passou de US$ 10."