Título: Evangelho de Judas não ameaça crenças cristãs
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/04/2006, Vida&, p. A35

Importância de texto, atestado como autêntico, é histórica, e não religiosa

O chamado Evangelho de Judas é um texto autêntico, foi realmente escrito 1.700 anos atrás, mas não representa uma ameaça às tradicionais bases do cristianismo, de acordo com estudiosos da religião. Por isso, Judas Iscariotes, o apóstolo renegado pelos cristãos, não deve ser alçado à condição de herói.

Com estardalhaço, o grupo National Geographic anunciou anteontem que os 23 papiros encontrados no Egito em 1978 foram redigidos no ano 300. O texto afirma que Judas não foi um traidor, ao contrário do que descrevem os quatro evangelhos da Bíblia.

Segundo o Evangelho de Judas, o apóstolo teria sido o melhor amigo de Jesus Cristo. Seria o único dos 12 discípulos que conhecia o destino do mestre. E, ao denunciá-lo aos romanos, o teria ajudado a cumprir sua missão divina, ou seja, ser crucificado para salvar a humanidade. A ordem para denunciá-lo teria partido do próprio Jesus.

"O texto tem uma grande importância historiográfica. Mas, como evangelho, não tem pé na realidade. É ficção", diz Fernando Altemeyer, professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Os especialistas explicam que o mais provável é que esse evangelho tenha sido escrito por uma seita gnóstica. Os gnósticos eram cristãos dissidentes que viveram na região do Oriente Médio entre os séculos 2º e 4º e defendiam que Deus havia criado não só o bem - também o mal.

Segundo Altemeyer, o Evangelho de Judas se encaixa perfeitamente nessa ideologia. "Na visão gnóstica, Deus quer o mal no mundo para que também haja o bem. Judas denunciou Jesus para fazer a luz vencer sobre as trevas", explica. "Jesus não foi um boi que aceitou ir para o abatedouro. Ele não queria morrer. Não fazia sentido que combinasse tudo com Judas."

VENERAÇÃO

Andréi Kuráyev, teólogo ortodoxo russo e professor da Academia Espiritual de Moscou, também defende que o Evangelho de Judas não acrescenta conhecimentos sobre a vida de Jesus. "Esse texto apenas amplia nossas idéias sobre as crenças gnósticas daquele tempo", diz.

O estudioso russo lembra que, naquele período, principalmente no Egito, existiam diversas correntes pseudocristãs, das quais algumas adoravam os personagens bíblicos mais detestados. Os cainitas, por exemplo, veneravam Caim (o primeiro assassino, que matou Abel, seu irmão). Os ofitas adoravam a serpente que levou à expulsão de Adão e Eva do Éden.

Kuráyev também critica o nome do documento, como se fosse um relato do apóstolo. "Não pode ser obra de Judas Iscariotes porque ele se enforcou no mesmo dia em que Jesus foi crucificado. Não pode haver nenhum Evangelho de Judas."

Esse é o mesmo raciocínio adotado em relação aos quatro evangelhos aceitos pelas igrejas cristãs. O nome do primeiro livro do Novo Testamento é Evangelho segundo São Mateus porque, acredita-se, foi escrito não por Mateus, mas por seus seguidores.

TEXTOS APÓCRIFOS

Diferentemente dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, escritos no primeiro século da Era Cristã, os textos gnósticos foram redigidos a partir do segundo século.

"Dizer que o Evangelho de Judas revela alguma coisa sobre Judas é a mesma coisa que dizer que um documento escrito 150 anos depois da morte de George Washington possa revelar a mais profunda verdade sobre George Washington", compara Ben Witherington, professor de assuntos ligados ao Novo Testamento do Seminário Teológico Asbury, na cidade de Wilmore, nos Estados Unidos.

Os evangelhos gnósticos estão entre os diversos textos escritos sobre Jesus após sua morte. Todos eles são chamados de evangelhos apócrifos, pois não são reconhecidos pela Igreja. A lista inclui, entre outros, os pergaminhos do Mar Morto e o Evangelho de Maria Madalena.

Em entrevista à agência católica de notícias Zenit, o padre Thomas Williams, decano da Faculdade de Teologia da Universidade Regina Apostolorum de Roma, disse que o Vaticano nunca se preocupou em esconder os textos apócrifos. "Essa teoria da conspiração foi inventada por autores de livros como O Código Da Vinci. Basta ir a qualquer biblioteca católica e ver que esses textos também estão lá, embora saibamos que não são verdadeiros."

O reverendo Donald Senior, presidente da União Teológica Católica de Chicago, nos Estados Unidos, vai além: "Acho que o Vaticano não vai dar a mínima atenção a esse texto".