Título: Um governo descendo a ladeira
Autor: Francisco C. Weffort
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

No rescaldo da reforma ministerial, Lula ficou só. Depois dos efeitos devastadores do "mensalão" e da queda de Dirceu, selou-se o fim do "núcleo duro" do governo com a derrubada de Palocci. O isolamento de Lula se agravou ainda pela incapacidade de iniciativas do governo e pela desorganização da sua base parlamentar. O Congresso, praticamente paralisado, até agora não aprovou o orçamento da União. Por cima disso tudo, o TSE e o STF confirmaram a Lei da Verticalização, tornando mais difíceis alianças eleitorais já programadas. E ressurgem, nesse quadro, os sinais de uma queda de credibilidade de Lula, que vem de há mais tempo, praticamente desde o início de seu governo.

É que, incapaz de conceber uma política econômica diferente da de Fernando Henrique Cardoso, e tendo fracassado em programas sociais lançados com grande alarde (Fome Zero, Primeiro Emprego, etc.), Lula resvalou quase de todo para a marquetagem e aos poucos a opinião publica se cansou de seus excessos de derramamento propagandístico. Cansou-se dos seus inúmeros bonés-de-bico e de suas incontáveis camisetas de publicidade, suas metáforas futebolísticas, suas histórias sobre os conselhos que recebeu de sua mãe quando era menino. Tudo isso misturado com o exibicionismo de supostas virtudes pessoais e uma propensão a converter ignorância em arrogância. São muitas as razões desse cansaço, mas algumas são evidentes. Todos os brasileiros podem fazer metáforas sobre futebol. Um grande número de brasileiros vem de origem humilde. E quem de nós deixou de receber bons conselhos da mãe quando criança?

O que, de início, parecia a comovente chegada de um ex-operário ao poder se foi tornando de uma mesmice que, sempre agravada pelo tom insuportável da mera demagogia, gerou impaciências hoje visíveis por todo lado. No cenário de uma despolitização da opinião pública, para a qual o próprio Lula contribuiu decisivamente, formadores de opinião começaram a usar de palavras duras, pouco usuais na tradição brasileira para presidentes da República. Ouve-se e se lê, aqui e acolá, que Lula é "bisonho", "idiota", "ridículo", etc. Fala-se também muito de "cinismo". E o PT? Ora, dizia há pouco uma escritora, "o PT merece o Oscar do fingimento." O presidente e seu partido atravessaram várias vezes a linha além da qual políticos deixam simplesmente de ser tomados a sério.

Lula, dizem, é a bola da vez. Poderia ser diferente? Tendo ao lado um partido desmoralizado, há quem olhe para os números das pesquisas e aposte no seu carisma pessoal. Será o bastante na perspectiva da dura campanha eleitoral que se avizinha? Uma coisa é manter-se à frente nas pesquisas quando se é candidato único, outra é enfrentar os competidores que começam a surgir para a disputa. Não há como duvidar, Lula começa a campanha muito fragilizado.

Como é inevitável no sistema das reeleições, a experiência do Lula candidato deverá refletir a experiência do Lula presidente. A reeleição é um plebiscito cuja primeira pergunta ao eleitor é: você quer que o presidente continue ou que seja substituído? E, se Lula chega à campanha fragilizado como candidato, é porque ninguém trabalhou mais contra sua própria autoridade presidencial que ele próprio. Ele se desgastou além de todo limite ao exagerar suas proclamações de "inocência" e de ignorância em relação a tudo o que tem havido de estranho em seu governo. Meteu os pés pelas mãos em todas as ocasiões em que se disse "traído" por companheiros para, alguns dias ou semanas depois, passar a mão na cabeça dos supostos traidores. Ou quando tentou atenuar crimes contra a democracia, como o "mensalão", em nome da suposta tese do "caixa 2", que, segundo disse, é pratica usual na política brasileira. Lula desgastou sua autoridade como presidente sempre que admitiu haver tido conhecimento de irregularidades institucionais que mandou calar. Por outro lado, esse chefe de um governo que se apressou em cometer ilegalidades contra um "simples caseiro" se vem revelando incapaz de afirmar a autoridade presidencial diante de evidentes rupturas da lei, como em incidentes recentes provocados pelo MST.

É isso o que se espera de um presidente? Já se fez a pergunta inevitável: Lula é cúmplice dos "erros" e "crimes" do seu governo ou é apenas um cidadão inepto para governar? Quanto à economia, que pretende venha a ser o seu maior trunfo, os resultados são medíocres: o crescimento do PIB em 2005 foi de 2,3%, perto da metade da média mundial (4,3%). É pouquíssimo para o "espetáculo do crescimento" que prometeu e nunca realizou. E o Bolsa-Família? Embora Lula, na sua simplicidade intelectual, tenha a propensão a pensar que tudo o que considera bom começou com ele, esse programa vem de há mais tempo, de iniciativas de governos anteriores. Neste país de extremas desigualdades, faz já algum tempo que os governos consideram adequada a existência de programas de compensação social que atendam, embora de maneira mínima, as camadas mais pobres da população. Basta que se inicie o debate eleitoral para que se desvaneça qualquer pretensão de exclusividade sobre os votos dos grotões.

Lula nunca esteve tão só como agora. Ao contrário do que se esperava, nestes três anos e meio ele tornou mais profundas as desconfianças dos que desacreditavam da sua competência para dirigir o País. Por culpa dos seus erros políticos, e eventualmente de ilícitos cometidos em seu governo, a opinião publica cansou-se da novidade que representou, ou imaginou representar, em 2002. Às vésperas de uma campanha que será obrigatoriamente um plebiscito, o que Lula tem pela frente é pouco mais que solidão e incerteza. Seu evidente fracasso no governo pode continuar na derrota em eleições que até algum tempo atrás lhe pareciam garantidas. E, tendo em conta as expectativas suscitadas por sua chegada ao governo e pela venda de ilusões a que se dedicou desde então, seu fracasso pode suscitar uma das maiores decepções políticas e sociais da História recente do País.