Título: Saúde quase perfeita
Autor: José Aristodemo Pinotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Nossa mortalidade infantil é duas vezes maior que a dos países com a mesma renda per capita da América Latina, a mortalidade materna chega a ser 20 vezes maior que a de Portugal, faltam acesso e acolhimento nos hospitais públicos e nos postos de saúde e não existe atenção primária organizada no País. Morrem 5 mil mulheres todos os anos de câncer de colo uterino, doença sexualmente transmissível, já controlada em todos os países ricos ou pobres que se preocuparam com saúde. A dengue já está endêmica e é aceita como tal, os hospitais públicos estão abandonados, faltam remédios e a Lei de Patentes, que destruiu a indústria farmoquímica brasileira, não foi revista no atual governo. Faltou coragem.

Os planos de saúde, que atendem 35 milhões de brasileiros, da classe média em extinção, têm na ANS (governo) um órgão preocupado com a saúde financeira das operadoras, sem nenhuma sensibilidade com os pobres e enganados usuários. A Medida Provisória nº 148/03, que regulamentou os planos de saúde, é uma caixa de maldades contra o usuário. Um entre muitos exemplos: dada a proibição de aumentar mensalidade a partir dos 60 anos (Estatuto do Idoso), a medida determina que todos os aumentos que eram feitos até os 75 anos venham, cumulativamente, para os 59 anos, expulsando precocemente o idoso, especialmente o que paga um plano corporativo, pois, se quiser continuar pagando com seus próprios recursos, só poderá fazê-lo se estiver usando o mesmo plano há dez ou mais anos. Isso nunca acontece e os planos ficam só com os jovens, que não adoecem e estão trabalhando em empresas que garantem seu pagamento. Se um aposentado que ganha R$ 2.801,56 (teto a partir de 1º/4/2006) quiser recomprar um plano, deve pagar, para ele e a esposa, metade do seu salário. Como dificilmente pode fazê-lo, fica desamparado na fase da vida em que mais precisa. Resultado: risco zero para as operadoras e o Estatuto do Idoso é usado pelo governo para prejudicá-lo.

Dizer que a saúde está quase perfeita porque inaugurou um hospital com alguma tecnologia é utilizar-se de uma verdade aplicada a alguns poucos e ignorar o todo. Demonstra o jeito de ser bem-sucedido de alguns políticos brasileiros de realizar coisas pontuais, tirar fotografia e fazer crer que aquilo serve a todos. Ou o presidente sabe disso e usa o episódio sem ética, ou está totalmente por fora da realidade nacional de saúde e do sofrimento de milhões de pessoas mal atendidas que votaram nele, na esperança de usufruir esse direito essencial. Perdemos quatro anos e muitas vidas. É uma pena, porque temos um sistema quase perfeito na Constituição e uma caricatura cada vez mais grotesca e desonesta, na prática.

Poucos movimentos, porém corajosos, seriam suficientes para darmos um salto de modernidade e eficiência. A montagem de uma atenção primária, multiprofissional, de atendimento integral, com bom acesso e acolhimento, e uma descentralização concreta de recursos para os municípios (que ficaram com a responsabilidade, mas sem os recursos) bastariam para, em poucos anos, oferecer uma assistência à saúde moderna, eficiente e digna aos brasileiros. É preciso, também, acabar com cotas e tetos para os hospitais públicos, que estão sendo tratados como privados corruptos, enquanto alguns privados amigos, como públicos e vestais.

Criamos, nos anos 1990, um modelo de atendimento, referendado pelo Hospital Pérola Byington (SP), que atendeu bem, por oito anos, 3 mil mulheres por dia, sem cobrar um real de ninguém. Objetivando assistir a população feminina, esse modelo foi desenvolvido, também, para possibilitar a organização de um novo sistema de saúde na seqüência das nossas pesquisas operacionais em Saúde Pública, na Unicamp (1975 a 1986) e na Secretaria de Estado de Saúde (1987 a 1991). Ele está hoje sendo aplicado em vários países do mundo, mas, infelizmente, não mais aqui.

Presidente, certa feita eu o ouvi contando como, antes de se tornar uma pessoa importante, foi mal atendido quando perdeu seu dedo e, tragicamente, sua primeira mulher; e como foi muito bem assistido, quando candidato à Presidência da República, ao ser operado, se não me engano, de apendicite aguda. Emocionei-me e fiquei convencido de que o senhor iria mudar esse injusto abismo. Mas, ao contrário, conseguiu piorá-lo. Recursos que a Emenda Constitucional 29 garantiu para saúde precisam ser regarantidos por manifestações ruidosas no Congresso. A vergonhosa segunda porta dos hospitais públicos, que tira serviços, recursos e espaços dos usuários do SUS, o senhor manteve e, não fossem os esforços da senadora Heloísa Helena e alguma ajuda minha, teria sido legalizada no seu governo. Até o rombo de R$ 1 bilhão por ano (cálculo do PT), que os planos de saúde fazem no SUS por não ressarcirem (com a complacência da ANS) os serviços de complexidade prestados aos seus usuários, o senhor manteve, juntamente com todas as demais maldades, quando determinou que derrubassem a medida de conversão, de minha autoria, que modificava a MP 148/03. Já que mesmo assim a saúde é quase perfeita, por que o senhor não experimenta ir a uma Unidade Básica de Saúde e fazer lá o seu check-up anual? Quando eu dirigi o Pérola, o check-up que fazíamos nos seus ambulatórios era melhor do que os realizados em qualquer clínica particular de São Paulo, inclusive na minha. Esse é o meu maior orgulho. Qual é o seu?

José Aristodemo Pinotti, deputado federal, membro da Academia Nacional de Medicina (cadeira 22), presidente do Imae, foi reitor da Unicamp (1982-1986), professor titular de Ginecologia da USP e da Unicamp (1970-2004), secretário de Estado da Educação (1986-1987), secretário de Estado da Saúde (1987-1991), secretário Municipal de Educação (2005-2006) e presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia - Figo (1986-1992)