Título: A greve da Anvisa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2006, Notas e Informações, p. A3

Iniciada no final de fevereiro, a greve dos fiscais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está entrando no terceiro mês, sem que haja qualquer perspectiva de acordo entre governo e grevistas. Os novos e antigos funcionários do órgão decidiram cruzar os braços até a União igualar seus salários e as principais autoridades de Brasília, alegando que o direito de greve do funcionalismo é reconhecido pela Constituição, até agora pouco fizeram para tentar acabar com a paralisação.

Entre as funções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, uma das mais importantes é fiscalizar a importação de produtos químicos e matéria-prima para a indústria. Como está concentrada no Sudeste, a greve afeta as principais portas de entrada do País, como o Porto de Santos e os Aeroportos de Cumbica e Viracopos. A irresponsabilidade dos grevistas, que parecem não ter consciência dos efeitos dessa paralisação para a economia e para a sociedade, já causou prejuízos de R$ 254 milhões para as agências de navegação e desorganizou a programação de empresas dos setores alimentício e farmacêutico, cujos estoques de insumos se encontram no fim.

Enquanto isso, matérias-primas já adquiridas permanecem estocadas nos países de origem, pois os fornecedores preferem não enviá-las, porque sabem que ficarão retidas nos portos e aeroportos e temem que elas se deteriorem por causa das más condições de armazenagem. O setor mais prejudicado é o farmacêutico. Segundo a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais, entidade que representa 45 empresas desse segmento, 70% das matérias-primas destinadas à produção local de medicamentos são importadas, não havendo similares no País.

Por isso, a paralisação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária ameaça a oferta de remédios de uso contínuo. Até agora, os mais prejudicados são os doentes com hipertensão, mal de Parkinson, mal de Alzheimer e infecções pulmonares. Se a greve não for encerrada nos próximos dias, ela também poderá ameaçar a produção de medicamentos usados em transplantes e reposição hormonal. Na fabricação de antibióticos e medicamentos cardiovasculares, a situação é crítica.

Sem alternativas, pois as autoridades de Brasília até agora não se dispuseram a cortar o ponto dos grevistas e descontar os dias de paralisação, as empresas recorreram à Justiça. Para evitar a interrupção de sua produção, algumas entraram com mandado de segurança para liberar insumos retidos nos portos e aeroportos. Mas, desde que os tribunais passaram a acolher esses pedidos, os fiscais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária vêm afirmando que, em retaliação, fiscalizarão essas empresas com rigor, quando a greve acabar. Isso dá a medida da audácia do funcionalismo na defesa de seus interesses corporativos.

Ao justificar seus protestos, os servidores alegam que a greve é um direito constitucional. Contudo, eles esquecem que os autores da chamada Constituição Cidadã, ao conceder esse direito, condicionaram seu exercício a uma lei complementar regulamentando-o. O problema é que, quase duas décadas depois, os governantes não tiveram coragem de propor essa regulamentação ao Congresso. No início de seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a afirmar que tomaria essa providência, mas a promessa não foi cumprida e sua gestão entrará na história como aquela em que o número de greves do funcionalismo bateu sucessivos recordes.

Nos países desenvolvidos, com sólida tradição de respeito aos interesses públicos e aos direitos individuais, o direito de greve dos funcionários públicos é limitado. Os servidores estatais podem cruzar os braços para reivindicar reajustes salariais, mas não podem, sob pena de multas e de prisão, paralisar serviços essenciais e pôr a vida de pessoas em risco. Entre as reivindicações de uma minoria e os interesses da maioria, estes é que, em nome da segurança jurídica, prevalecem nesses países.

Se nossos governantes refletissem sobre isso, em vez de se acovardarem perante greves abusivas como a dos fiscais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, eles perceberiam como a segurança jurídica tem relação direta com o desenvolvimento econômico e político.