Título: O grito dos falcões
Autor: Marie-Pierre Poirier
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

No domingo 19 de março, os jovens personagens que havíamos conhecido no filme Cidade de Deus saltaram de seu mundo de ficção para o mundo real e se apresentaram a todos os brasileiros no documentário Falcão - Meninos do Tráfico, de MW Bill e Celso Ataíde. Já se passou um mês desde então, mas os gritos de socorro dos falcões continuam a reverberar em nossa consciência. Os debates que se seguiram apontaram para múltiplos aspectos de análise. Gostaríamos de destacar dois deles.

Ao refletir sobre o documentário, é importante lembrar que as crianças e as famílias moradoras das favelas ou de bairros periféricos das metrópoles brasileiras - assim como as de todos os países com economias em transição e integrados às rotas internacionais do comércio ilegal de drogas e de armas de fogo - vivem expostas cotidianamente a situações de alta violência, diretamente relacionadas a formas extremamente agudas de desigualdade socioeconômica. Impossível deixar de perguntar: quem lucra com o engajamento - e, conseqüentemente, com a morte - de crianças e adolescentes no mercado ilegal da droga e das armas? Sabemos que por trás dessas mortes há uma complexa rede de comércio ilegal cuja lógica, bem organizada, se alimenta da vulnerabilidade de famílias pobres.

Mas, além de refletir sobre a lógica econômica que está por trás da violência contra essas crianças, temos de dar atenção ao recorte racial dos assassinatos de crianças e adolescentes nas grandes cidades brasileiras. O documentário expõe contundentemente uma das mais graves violências sofridas por crianças e adolescentes negros moradores das áreas pobres e periféricas dos centros urbanos. Dos 17 adolescentes do documentário, apenas um sobreviveu. Todos eram afrodescendentes. O documentário sinaliza para o crime e para a morte, mas sinaliza também para o preconceito. Expõe a forma violenta como crianças pretas e pardas estão morrendo nas cidades. Seria este um dos temas centrais a ser destacado na Conferência Regional das Américas, a ser realizada em julho, que deverá avaliar, após cinco anos, os avanços ocorridos nas Américas no combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e a intolerâncias correlatas?

Os programas sociais dedicados ao fenômeno do aliciamento de crianças e adolescentes por grupos criminosos, bem como os resultados dos poucos estudos disponíveis, estimam que não deva passar de 1% o total de moradores envolvidos com o tráfico nas comunidades onde o comércio ilegal de drogas se instalou. Estimam também que crianças e adolescentes com menos de 18 anos constituiriam não mais que metade deste porcentual (Souza e Silva, J.,2002; Dowdney, L., 2003).

Trata-se de um indicador importante, que contrasta com o levantamento produzido pelo Núcleo de Estudos da Violência, da USP, a ser publicado em breve pelo Unicef, que aponta para um crescimento linear de 417% do número absoluto de homicídios de adolescentes brasileiros de 15 a 19 anos, desde 1980. Só em 2002 foram assassinados no Brasil 7.961 meninos e meninas.

Estes números contrariam os preconceitos e estereótipos que, estimulados pelo medo, têm o poder de transformar vítimas em culpados e de fazer com que, aos olhos de muitos cidadãos, qualquer criança negra e pobre que caminha pela rua se constitua em ameaça e em símbolo de violência. É este mesmo medo, gerador de discriminação e preconceitos, que serve para legitimar táticas de "guerra" e de "combate" ao crime que não fazem diferença entre moradores e criminosos e já levaram à morte um número enorme de crianças - quase sempre negras - que brincavam na porta de suas casas.

Como começar a reverter esta situação sem atuar exclusivamente sobre os sintomas? A idéia é intervir antes da chamada "idade da morte". Estudos do Unicef revelam que entre os 11 e os 14 anos de idade crianças e adolescentes vivem o seu período de maior vulnerabilidade. É nessa fase que são registrados os maiores índices de evasão escolar, de ingresso nas redes de trabalho infantil, de uso de drogas, de exploração sexual, de abandono da casa e de ingresso no tráfico de drogas. Trata-se de uma idade que deve ser percebida como uma "janela de oportunidades" para programas e projetos de prevenção e redução dos homicídios, que têm maior incidência entre os 15 e os 19 anos.

Já faz 20 anos que o Brasil convive com assassinatos de crianças nos grandes centros urbanos. No ano passado, o Unicef ajudou o governo brasileiro a organizar, em São Paulo, uma consulta nacional sobre a violência contra a criança, que faz parte do Estudo Global que será lançado pela ONU em outubro. Além disso, assim como muitas outras organizações e agências, temos acompanhado e apoiado projetos comunitários que reconhecem esses fatos e tentam conter o ingresso de adolescentes no tráfico, mas também resgatar aqueles que já ingressaram. São projetos que fazem dos adolescentes os protagonistas da reconstrução de sua própria identidade.

Algumas dessas iniciativas são baseadas em tecnologias e práticas de comunicação e têm assumido papel relevante na valorização, pelo adolescente, do meio em que vive com sua família. Têm ajudado os adolescentes a se posicionar melhor tanto ante as dores e os preconceitos que sofrem, quanto no respeito pela alegria e vitalidade cultural de suas comunidades.

Para o Unicef, as organizações comunitárias que implementam esses projetos constituem a maior força que o País tem para enfrentar o problema, reduzir violências e valorizar a diversidade. Cabe aos governos e ao setor privado reconhecer urgente e definitivamente a importância dessas iniciativas, articular-se com elas, fortalecê-las e contribuir - de forma efetiva - para que possam proteger os direitos das crianças e dos adolescentes, negros e brancos. Temos todos a obrigação de contribuir.