Título: Que austeridade fiscal, que nada!
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2006, Nacional, p. A2

Ontem participei de seminário do Comitê de Desenvolvimento do Mercado de Capitais (Codemec), do Ibmec-RJ, instituto voltado para esse mercado. Coube-me debater dois trabalhos sobre o ajuste fiscal de longo prazo, preparados pelos economistas Raul Velloso, especialista em contas públicas, e Fábio Giambiagi e Paulo Tafner, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que também pesquisam o assunto.

Os dois estudos mostram um grave quadro das finanças do governo federal. Gastador, fiscalmente irresponsável, sem limites de endividamento, com o poder de aumentar alíquotas de impostos, ele sempre se alegra quando a arrecadação sobe por essa e/ou outras razões. Também engana a mídia e a sociedade em geral com o blablablá de que na área fiscal pratica austeridade, realiza ajuste, faz esforço, mostra um superávit e por aí afora, expressões que costumam virar manchetes sem maiores reflexões sobre seu significado. Por exemplo, o superávit que o governo anuncia é o chamado primário, na realidade, um cobertor curto, pois deixa de fora, da barriga para baixo, o corpo das despesas com juros. Depois de incorporadas às contas, o resultado final é sempre um déficit que vira mais dívida pública.

Nós, economistas, somos também culpados por às vezes usarmos termos que precisariam ser mais fortes para mostrar esse quadro calamitoso. Velloso argumentou que desde 1999 houve um ajuste fiscal que se baseou em "elevação da carga tributária e redução dos investimentos, enquanto a despesa corrente continuou em trajetória ascendente". E prosseguiu afirmando que se trata de "um tipo de ajuste com impacto negativo sobre o crescimento econômico de longo prazo..." Ora, é preciso ser um governo maroto para se gabar por esse "ajuste com impacto negativo", pois nenhuma empresa ou organização contrataria alguém para fazer algo semelhante, prejudicando o crescimento do entorno que a sustenta. Desajuste é um nome mais apropriado para o embuste, pois ajustes financeiros dignos do nome em geral se sustentam fundamentalmente em cortes de despesas.

Velloso também citou literatura que mostra o efeito deletério, sobre o crescimento econômico, da escassez de investimentos públicos, do aumento dos gastos correntes e da ampliação da carga tributária. Ao lado de outras considerações, mostrou ainda que o aumento mais forte dos gastos primários (que igualmente excluem juros) do governo federal ocorre na Previdência Social. Propôs várias medidas para contê-los, como a desvinculação dos benefícios assistenciais e previdenciários em relação ao salário mínimo, ou a interrupção da política de aumentos reais desse salário. Na educação pública de nível superior, sugeriu a cobrança de anuidades e o recurso ao crédito educativo, em lugar da gratuidade do ensino (para os estudantes, mas não para o contribuinte).

Giambiagi e Tafner apresentaram um diagnóstico semelhante dos problemas fiscais, tocando inclusive nas despesas com juros, que chamam de carga financeira, e na questão da dívida pública, preconizando sua redução mediante combinação de "esforço primário em doses adequadas" e de declínio duradouro da taxa de juros real. Como Velloso, ressaltaram também os fracos investimentos públicos e a forte expansão da carga tributária que segue o acelerado crescimento dos gastos, em particular na Previdência Social.

As muitas propostas de Giambiagi e Tafner incluem, entre outras medidas, um teto para os gastos não-financeiros, uma nova reforma da Previdência que, no caso do INSS, incluiria uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, a ampliação progressiva dessa idade de um modo geral e, também, a desvinculação entre o salário mínimo e o piso dos benefícios previdenciários.

Análises e propostas como essas são cada vez mais freqüentes entre os economistas que analisam as finanças públicas federais, e há grande convergência quanto à necessidade de conter os gastos públicos não-financeiros, mas sem prejuízo dos investimentos. Isso como passo inicial para ampliá-los, reduzir a dívida pública como proporção do PIB e o valor dos juros reais mais fortemente do que faz o Banco Central. E, mais à frente, diminuir a própria carga tributária. Ou seja, um ajuste digno do nome, com efeitos positivos para o crescimento econômico do País.

Em que pese essa convergência, estamos numa situação em que a gravidade do problema não é levada à população e as soluções propostas estão muito distantes de ser assumidas pela classe política. Qual candidato presidencial ousaria colocar na agenda uma referência explícita a propostas impopulares como as mencionadas acima? Em outras palavras, o que temos é um sistema de duas equações, uma política e outra econômica, em que as soluções desta não satisfazem à primeira, o que torna o sistema inconsistente.

No seu documento, Giambiagi e Tafner afirmam que ele é imbuído de um "espírito de persuasão" e procura ressaltar a importância de o próximo governo enfrentar os problemas que diagnosticam. É fundamental que os economistas prossigam nesse esforço, mesmo diante de políticos que se comportam como cegos, surdos, mudos e sem coragem para enfrentar esse quadro fiscal que está afundando o País.

Em particular, é preciso revelar os problemas em sua dura gravidade, sem recursos a eufemismos como esses da austeridade e do aperto fiscal. Quem se aperta mesmo é o povo, pagando impostos crescentes para sustentar um governo que só quer saber de gastar mais. Mesmo que gastasse bem, o que está longe de ser o caso, hoje a questão fundamental é que seus enormes peso e tamanho já asfixiam a economia e os contribuintes que o sustentam.