Título: "Faltou ação diplomática preventiva do Brasil"
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2006, Economia & Negócios, p. B6

Há duas décadas, Peter Hakim, físico de formação que viveu no Brasil como representante da Fundação Ford, acompanha e influencia o debate sobre as relações continentais em Washington, à frente do Diálogo Interamericano. A decisão da Bolívia de nacionalizar o gás e suas implicações para o Brasil e o resto do continente estarão no centro da reunião anual que o Diálogo fará no próximo fim de semana em Washington, durante a qual o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso passará a co-presidência que ocupa desde 2003 ao ex-presidente do Chile Ricardo Lagos. Na sexta-feira, Hakim antecipou sua análise em entrevista ao Estado.

O que a nacionalização do gás pela Bolívia significa para a posição do Brasil na região?

A política brasileira sempre teve duas âncoras. Uma é ser um instrumento da política nacional de desenvolvimento econômico e modernização. Outra é manter boas relações com nações da América do Sul. Isso sempre se traduziu numa política externa pragmática, que buscou ao mesmo tempo aprofundar as relações com EUA, Europa, Japão e, cada vez mais, a China, para realizar o primeiro objetivo, e, ao mesmo tempo, cultivar um diálogo pacífico, cordial e cooperativo com as nações fronteiriças. Antes do governo Lula, com a criação do Mercosul, por exemplo, o Brasil introduziu um terceiro ingrediente, mais ideológico, que foi a busca de um papel de liderança na região. Pode-se argumentar que, para um País com as dimensões e os interesses do Brasil, o papel de liderança internacional é importante com um reforço dos dois outros objetivos que mencionei. Mas a liderança não deve ser um objetivo em si mesmo. E o problema é que a busca de liderança, no governo Lula, passou a ser um objetivo em si mesmo. Coisas como a formação de uma comunidade da América do Sul, a busca de uma cadeira no Conselho de Segurança e de outras posições em foros internacionais começaram a tomar espaço dos objetivos centrais. E a política externa perdeu em qualidade, deixou de ter diretrizes claras que teve no passado.

A busca de liderança regional pelo Brasil incomodou os EUA?

Não. Os EUA aquiesceram, à medida em que a pretensão brasileira de liderança não envolveu confrontação com Washington. Ao mesmo tempo, os EUA nunca levaram essa pretensão de liderança muito a sério. O Brasil não tem os recursos, poder militar, "soft power" e presença moral que lhe permitiriam ser uma real potência regional. No final, os países da região continuaram a gravitar em torno dos EUA.

Surpreendeu-o a conduta da diplomacia brasileira neste episódio com a Bolívia?

O episódio ainda não acabou e ainda temos que ver como as coisas evoluirão. Poucas pessoas previram o que aconteceu. Ao mesmo tempo, está claro agora que faltou ação diplomática preventiva do Brasil desde a posse de Evo Morales. O Brasil não levou Morales a sério, não entendeu seus objetivos, não compreendeu sua relação com Hugo Chávez e subestimou Chávez. Operava com o melhor cenário. E isso é sempre perigoso em política externa. Agora, olhando para o futuro, não parece fazer sentido para o Brasil revidar a ação de Morales com uma resposta da mesma natureza. O Brasil terá que refazer esse caminho com a Bolívia. O que salta à vista, no entanto, é a presença de Hugo Chávez no encontro de presidentes em Iguaçu. Ela indica que Chávez tem um papel especial a desempenhar na América Latina e diminui Lula e a pretensão de liderança.

A reação da administração Bush à ação foi surpreendentemente contida até agora. Por quê?

Estão observando para ver como as coisas evoluem. Os EUA não têm muito em jogo na Bolívia em termos econômicos. A atitude da administração, desde o início, foi dar a Morales o benefício da dúvida, mas sem nunca acreditar que seu governo evoluiria num sentido positivo. O efeito da decisão boliviana em Washington é enfraquecer a posição daqueles que advogavam a manutenção de uma atitude aberta e flexível em relação a Morales em várias frentes, incluindo a guerra contras as drogas, e fortalecer os que acham que a situação na América Latina está deteriorando, que Morales é agora parte de um novo eixo com Chávez e Fidel Castro e que os EUA devem endurecer.

O episódio diminui Lula aos olhos dos EUA?

A visão dos EUA sobre Lula é relativa. Numa América Latina que parece mover-se cada vez mais para a esquerda e distanciar-se dos EUA, Lula é um bom amigo. Não é alguém em quem os EUA tenham muita confiança. Mas na comparação com Kirchner, Chávez, Morales, Lula faz do Brasil um porto mais amigo dos EUA.

O fato de Morales ter anunciado a mudança depois de se reunir com Chávez e Castro em Havana alimenta a teoria de que é uma ação para pressionar Lula a caminhar para a esquerda.

A decisão também pode empurrar Lula para a direita e levar a um racha entre ele e Chávez. Agora, não parece haver dúvida de que Chávez e Fidel acreditam que eles se beneficiam quando há instabilidade na América Latina. Tudo isso beneficia o plano de Chávez de consolidar suas iniciativas antiamericanas e dar-lhe a sensação de que ele tem a iniciativa e que a liderança regional não pertence ao Brasil, mas à Venezuela e sua revolução bolivariana.