Título: Não removeram o tumor!
Autor: Sandra Cavalcanti
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Quando o presidente do Senado deu como aprovadas as mudanças na Lei Eleitoral, foi como se um cirurgião saísse da sala de operações e dissesse à família: "Não tirei o tumor porque a direção do hospital e os médicos que o atendem não querem ver o cliente em boa forma. Não querem que ele morra, é verdade. Mas querem que ele, bem doente, não possa dirigir livremente os seus negócios."

Foi triste ver que a calamidade da atual crise política não foi suficiente para que a maioria dos parlamentares lutasse por um progresso político real. Na verdade, como diziam os romanos, a montanha pariu um rato! Mexeu em quinquilharias, plantou um bode na sala e se deu por satisfeita.

A reforma, por acaso, acabou com as numerosas siglas que o eleitor mal distingue? Não. Resultado: para as Casas legislativas ele vai ter de escolher entre milhares de nomes...

A reforma acabou com a infidelidade partidária? Não. Deu um passinho miúdo. A bancada do partido vai ser aquela que se elegeu, e não a que tomar posse. Mas, se o deputado quiser mudar de partido, muda. Na hora das votações importantes, pode impunemente desobedecer à legenda que o colocou lá, pelo voto proporcional.

Por falar nesse monstrengo que se chama voto proporcional, a reforma acabou com ele? De modo algum. Como conseqüência, as eleições continuarão a ser caríssimas, dispendiosas, enganadoras e hipócritas, exigindo de qualquer candidato um esforço desnecessário e errado. Ele terá de obter votos em todo o território do seu Estado. Tem de buscar apoios onde nem é conhecido. Terá de apresentar programas falsos, grandiosos, que escapam inteiramente à sua jurisdição. Terá de se classificar muito bem dentro de sua legenda. Seus adversários mais ferrenhos serão os seus companheiros de chapa. No voto proporcional é assim. Haja dinheiro!

Com a reforma se acha que vão ser barateados os custos do voto proporcional com a proibição de bonés, camisetas e brindes de muitas espécies, como se fossem essas quinquilharias as responsáveis pelo gastos excessivos. É engano. As campanhas continuarão a ser caríssimas por causa do voto proporcional e da quantidade absurda de legendas, não por causa dos brindes.

Proibindo, também, cartazes, outdoors e luminosos, eles imaginam que os gastos de campanha diminuirão. Aliás, a reforma não conseguiu tratar do financiamento público de campanha, que é impossível com dezenas de partidos e com o voto proporcional. Acham que a propaganda supostamente gratuita pelo rádio e pela TV supre esse apoio, para isso estabelecendo regras e limites que beiram os dos governos autoritários.

Na realidade, a reforma aprovada não reforma nada. O Brasil continuará a impedir, de forma imperial, que a vontade livre do eleitor se possa manifestar. Mesmo com a urna eletrônica dando garantias de que a apuração vai ser feita de forma correta e limpa, o voto do brasileiro, nas eleições para as Casas legislativas, vai ser sempre fraudado pelo sistema proporcional.

As democracias modernas, todas, usam o voto distrital. Puro ou misto, ele expressa a real vontade do eleitor. O voto distrital não é desviado para outra pessoa. Vai para o escolhido.

O voto distrital provoca uma revolução na vida dos partidos, porque é um voto de conhecimento. É um voto de análise. É um voto de juízo formado. No voto distrital, o candidato vive e atua na área do seu eleitor. Sua eleição não depende de popularidade. Fora do seu distrito ele pode até ser desconhecido, mas isso não importa. No seu distrito sabem quem ele é.

Para sair candidato pelo seu distrito ele precisa ser filiado a um partido que ali, naquele distrito, mantém seção e atua junto aos moradores. Ali ele vai viver a vida partidária, de fato. Reuniões, debates, programas, enfim, tudo o que caracteriza um regime democrático.

Antes do período eleitoral, o partido faz as suas prévias. E escolhe, democraticamente, por voto direto e secreto, aquele ou aquela que vai ser o candidato no distrito eleitoral. Essa disputa previa é intensa, válida e benéfica. Feita a escolha, acaba a luta interna. O mais votado vai ter todos os companheiros ajudando na campanha. Campanha que será pobre, simples, honesta. Não dependerá de caixa 2 nem de horário de rádio e TV. Vai depender de sola de sapato, boa mensagem, apertos de mão e muitas reuniões. Nada de shows, nada de comícios, nada de artistas ou bandas. Uma vez eleito, a cadeira é do partido. Pode até mudar de legenda, mas perde o mandato. Esse é o voto distrital puro. O misto é apenas uma variação. Nas prévias, dois nomes são escolhidos. Um deles vai para o confronto direto. O outro vai para a lista fechada do partido. É uma modalidade mais sofisticada, mas nela, também, a vontade do eleitor não é fraudada.

Tudo o que aconteceu no Brasil nestes últimos meses resultou desse tumor chamado voto proporcional. Herança trágica do período getuliano que, infelizmente, em todos estes anos, as oposições nunca lograram remover.

A terrível realidade é esta: com ele as campanhas continuarão caríssimas. Os eleitores continuarão votando numa pessoa e elegendo outra... Os partidos continuarão numerosos e frágeis, sem vida e sem calor. E certamente, nesta estrutura cheia de rachaduras, outros caixas 2 virão, outros mensalões, outros Dirceus, outros Delúbios, outros Valérios.

A nossa sorte é que Deus protege o nosso povo e, de vez em quando, surpreende esses malandros. Somos um país que é salvo por gente humilde, motoristas, caseiros e secretárias.

Por isso, não podemos desanimar. Vamos prestar mais atenção. Vamos usar as regras, da melhor maneira que pudermos. E vamos pedir de nossos candidatos o compromisso de, afinal, com coragem, salvar o doente e remover o tumor. Por que não?

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, ex-deputada federal constituinte, foi secretária de Serviços Sociais do governo Lacerda, fundadora e presidente do BNH. E-mail: sandra_c@ig.com.br