Título: A rainha que sobrevive a seu império
Autor: Gilles Lapouge
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/04/2006, Internacional, p. A14

Na véspera do aniversário da monarca, sua prima diz que ela não tem planos de abdicar ao trono inglês

Ela conheceu as maiores figuras de seu tempo: 10 primeiros-ministros britânicos, de Churchill a Tony Blair, 11 presidentes - dos Estados Unidos, franceses, italianos, russos. Assistiu à destruição de seu Império, um fim da história, ao declínio e à ressurreição de seu reino.

Sua memória é um livro de história e, segundo a prima dela Margaret Rodhes, pretende ocupar o trono até o último de seus dias. Essa mulher que hoje completa 80 anos é um arquivo formidável, mas, desse arquivo, nenhum eco jamais nos chega. A rainha leva o dever da dignidade ao extremo. Ela não diz nada. A única confidência eventual diante de alguns íntimos: a rainha tem talento para a imitação: suas três vítimas preferidas são Boris Yeltsin, Margaret Thatcher e Tony Blair. Assim é Elizabeth II: testemunha de um século dilacerado e patético.

Inteligente e ativa, ela esteve nos quatro cantos de seu século, esteve presente em todas as tragédias, mas se condena ao silêncio. Ela é como um buraco negro no cosmo: todas as palavras dos grandes deste mundo chegaram a ela e nenhuma (de publico, ao menos) saiu dali.

Se alguém fosse ler dentro de sua cabeça, teria certamente que desvendar um código secreto do qual os especialistas nos oferecem algumas chaves: se ela pousa a bolsa na mesa, seus assessores sabem que quer ir embora. Quando põe a bolsa no chão, o veredicto é sem apelação: a pessoa junto dela a aborrece. É preciso agir.

Isto faz pensar em outros soberanos, os antigos imperadores da China, que governavam através da cortina: eles não eram vistos, mas se adivinhavam suas intenções, seus sentimentos e suas ordens pelos estremecimentos codificados da cortina por trás da qual ocultavam o rosto dos cortesãos.

Alguns explicam essa aparente frieza, essa impassibilidade, essa reserva pelo caráter inglês e as necessidades do trono. Isto em parte não é exato. A rainha-mãe, cujo nome herdou, Elizabeth I, era uma folgazã no tempo de Shakespeare. Sua tataravó, Victoria, tinha ao menos o prazer de reinar sobre cinco continentes.

Deve-se explicar, portanto, a fraca emotividade de Elizabeth por sua história. Sua condição real foi-lhe imposta pela renúncia de seu tio, Eduardo VIII, em 1936, que abdicou por amor a uma plebéia americana, Wallis Simpson. O duque de York, irmão de Eduardo VIII e pai de Elizabeth, tornou-se então o rei George VI.

Este foi um rei de uma tristeza assustadora. Detestava seu ofício e deu de gaguejar. Sua filha, Elizabeth, foi encerrada numa gaiola dourada e sinistra - a antecâmara de sua futura função. Desde seu nascimento, sua mãe (Elizabeth Bowes-Lyon) ensinou-lhe que ela seria rainha e a obrigava a soletrar: "Eu não sou comum, não sou comum." A futura rainha é obrigada a amputar toda sua emoção. Ela não tem sombra de liberdade, de infância. Tristeza. Lorde Strathmore assegura que ela rezava pelo nascimento de um irmão para poder escapar de seu destino monárquico.

Nada de escola, apenas preceptores. Nem uma única amiga. Solidão. Aos 3 anos, foto de capa do jornal Times. Disse o ex-ministro Douglas Hurd: "Se a mecânica constitucional de Elizabeth é notável, sua mecânica emocional está avariada." Alguns acham que ela reproduziu em seus filhos essa educação glacial.

Muitos lembram do minúsculo Charles fazendo fila para apertar a mão da mãe que voltava de um compromisso real de seis meses. As instituições são mais importantes que a família. Os filhos são confiados a governantas. Nessa existência sufocada sob os dourados, os protocolos, os ritos e a etiqueta, um único período de alegria: depois de seu casamento com seu primo, o oficial de Marinha Philip Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glucksbourg, ela viveu três anos em Malta. Liberdade: primeiro, seu jovem esposo a chama "Salsicha", o que diverte muito Sua Majestade. Depois, ela respira como toda mulher jovem. Mas a bonança dura pouco. Coroada em 2 de junho de 1953, ela retoma o destino faustoso e aborrecido para o qual a mãe a havia tão terrivelmente treinado.

É irônico que essa rainha afetada, forrada de moralidade, só tenha galgado o trono por causa de uma magnífica e atrevida história de amor louco - a que fez Eduardo VIII rejeitar a coroa. É um pouco como se o longo reinado de Elizabeth fosse a reparação, ou o contrário, do reinado impedido de seu tio.

Essa soberana severa, pobre de ternura, poderia ter cansado seu povo, sobretudo depois de um reinado tão longo, num período em que a soberba Inglaterra perdeu muitas plumas e a instituição monárquica parece apenas sobreviver. Nada disso. Por sua coragem (durante a guerra), sua perpétua dignidade, seu senso do dever, ela ganhou a confiança e mesmo a ternura dos ingleses. Estes admiraram também a firmeza com que ela suportou as extravagâncias de uma família agitada, singular e, às vezes, imoral. Um único momento de divórcio com seu povo: a frieza altiva que ela mostrou ante a morte de Diana.

Claro, existe uma fração que deseja o fim da realeza. Mas os republicanos são uma minoria - 15% a 20%. Até a agressiva feminista australiana Germaine Greer admira "sua honra, sua discrição, sua constância": "Nossa dívida para com ela é incalculável", diz Greer. O apego dos ingleses a sua rainha tem outras motivações, mais profunda. Toda sua conduta celebra uma maneira de viver britânica, ameaçada pela modernidade, a globalização, o multiculturalismo.

Elizabeth é um pedacinho maravilhoso do interior rural inglês, tal como ele perdura há mil anos - cavalos, cães, chá, bolinhos, bolo Dundee, distinção, jardins, silêncios. Mais que a personalidade de Elizabeth, é a instituição que fascina.

Num universo perdido em caminhos que ninguém conhece, a monarquia, sua poeira, seus veludos, seus brasões e seus dourados, suas tolices, seus protocolos constituem uma promessa de permanência. A história tomou o freio nos dentes e galopa como uma desvairada. Ante o turbilhão espumante do tempo, a monarquia é uma estrela polar. Ela reside sobre os taludes imóveis que se estendem para além do tempo.