Título: O dirigente que virou demente
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2006, Nacional, p. A6

Silvio Pereira não era doido quando ocupava a função de secretário-geral do PT, bem como não teve suas faculdades mentais questionadas pela cúpula do governo quando, na condição de dirigente partidário, dava expediente no Palácio do Planalto coordenando a execução da ocupação do aparelho do Estado pelo PT e seus aliados.

Um Land Rover, um ano e uma entrevista depois, confirmando que havia no partido um sistema de arrecadação ilegal de recursos a partir da ação de agentes públicos e da manipulação da máquina do poder, Silvio Pereira virou um rematado demente.

Expressões como "desequilibrado", "espiritualmente atormentado" (tomado por demônios, talvez?) foram conjugadas aos adjetivos "traidor" e "corrupto" para compor o novo perfil do ex-dirigente, traçado por seus ex-companheiros de partido e de governo interessados em desqualificá-lo como testemunha ocular da história resumida pelo procurador-geral da República na denúncia já encaminhada ao Supremo Tribunal Federal contra a "organização criminosa" montada no governo Luiz Inácio da Silva para lhe garantir a perpetuação no poder.

A intenção é atroz: apresentá-lo ao público como um desvairado prisioneiro da culpa do corrompido. Uma medida preventiva. Não só, nem principalmente, pelo que poderia acrescentar à CPI dos Bingos ou à Procuradoria-Geral do Distrito Federal além do que disse na edição de domingo do jornal O Globo.

O empenho em depreciar a testemunha - ação conceitualmente bastante semelhante à tentativa feita em relação ao caseiro Francenildo dos Santos Costa - esconde mais o temor do dano que Silvio Pereira possa a vir a causar durante a campanha eleitoral.

Não se sabe as razões que levaram o ex-dirigente a dar informações anteriormente negadas por ele. Se arrependeu-se e teve o intuito de esclarecer os fatos, iria hoje à CPI dos Bingos, amanhã à procuradoria e repetiria o que disse ao Globo.

Mas, pelo jeito como assumiu a condição de perturbado ao alegar "estresse pós-traumático" para pedir ao Supremo Tribunal Federal salvo-conduto para não ser de novo questionado sobre o assunto, teve apenas o propósito de chamar a atenção do PT, preferindo manter a mesma disciplina exibida quando esteve na CPI dos Correios.

Na ocasião, seu depoimento também foi precedido da disseminação de versões sobre sua fragilidade emocional. Debilidade esta desmentida pelo comportamento de Silvio Pereira na cadeira de depoente.

À parte agressões ao idioma pátrio e um evidente déficit intelectual, mostrou-se dono de perfeito juízo e disciplina. Só admitiu a história do Land Rover porque o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto o confrontou com provas.

Na entrevista ao Globo deu a entender a quem interessar possa que a disciplina tem limites. Quais seriam eles, só Silvio Pereira e o PT podem saber.

Mas está visto que o rapaz representa um perigo para quem pretendia dar por encerrada a crise e, melhor, iniciar uma campanha eleitoral fazendo crer que os danos dos escândalos já estavam devidamente contabilizados.

Daí o imperativo de fazer uma ofensiva para neutralizar toda e qualquer ação que possa partir de Silvio Pereira, cuja deformação - na ótica petista - não foi ter calado na CPI sobre episódios na ocasião desconhecidos, mas ter falado agora a respeito de fatos por todos já conhecidos.

Resta saber quais os fatores que provocam em Silvio Pereira tão radicais transformações. Uma hora é o dirigente confiável, noutra o depoente disciplinado, mais à frente o entrevistado perfeitamente referido em dados de uma realidade com começo meio e fim para, em seguida se mostrar no papel do arrependido e alucinado assumido.

Francamente, parece tudo uma grande e combinada encenação.

Múltipla escolha

A avaliação feita ontem na Comissão de Relações Exteriores do Senado pelo chanceler Celso Amorim sobre a forma como o presidente da Bolívia, Evo Morales, cumpriu seu compromisso interno de nacionalizar a produção e comercialização de gás e petróleo foi semelhante às dos críticos da condução dada pelo governo brasileiro ao episódio.

Celso Amorim chamou a ocupação da Petrobrás de "simbolismo desnecessário", qualificou a ação como "adolescente", classificou a maneira intempestiva de Morales de "gesto espetaculoso" e admitiu que a presença do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, na reunião da semana passada em Puerto Iguazú se deveu à influência dele sobre Morales. Reconheceu que o Brasil foi condescendente por temer uma reação radical do presidente boliviano, "e por extensão, de Chávez".

Quer dizer, o País admite que lida com dois presidentes fora do esquadro da normalidade, abre mão de manifestar de público seu descontentamento para não desagradá-los, assina uma nota oficial rendendo homenagens à ação da dupla , dá a isso inicialmente o nome de respeito à autodeterminação dos povos e depois quer validar firmeza a posteriori por meio do ministro das Relações Exteriores em posição contraditória à reação do presidente da República.