Título: Nos passos de Maquiavel
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

O dr. Antonio Fernando de Souza, procurador-geral da República, tão logo recebeu o relatório da CPI dos Correios, apresentou denúncia ao Supremo Tribunal Federal, na qual endossa completamente o parecer do deputado Osmar Serraglio e apresenta argumentos diretos, sólidos e incisivos. Com isso a crise política atinge novo patamar. De "mera intriga da oposição" a tese do mensalão ganhou contornos jurídicos, e isso é muito grave.

Vamos procurar entender. O procurador-geral da República, segundo as disposições constitucionais, é o chefe do Ministério Público da União, nomeado pelo presidente da República dentre integrantes da carreira de procurador, tem mandato de dois anos e seu nome aprovado pela maioria absoluta dos membros do Senado. Investido no cargo, só pode ser demitido, por iniciativa do presidente da República, se a mesma maioria absoluta do Senado concordar. O Ministério Público (MP), por sua vez, é a instituição incumbida da defesa da ordem jurídica e do regime democrático, tendo sua autonomia funcional e administrativa assegurada pela Constituição de 1988.

A princípio houve abusos, é verdade. Todos se lembram do célebre Luiz Francisco de Souza, um procurador que usou de sua autonomia para promoção pessoal, através da mídia, e exorbitou de suas funções ao se colocar como um instrumento de seu partido do coração, o PT. Em contrapartida, alguns procuradores-gerais se valeram do cargo para engavetar processos que incomodavam os governantes que os nomearam. Ao completar 18 anos de existência autônoma, o MP alcançou a maioridade. E também a maturidade. Os seus integrantes parece que finalmente assumiram a responsabilidade inerente ao grande poder que detêm. Não se ouve mais falar de procuradores exibicionistas e inconseqüentes, tampouco de procuradores-gerais que se prestam a facilitar a vida dos chefes do Executivo que os nomearam.

Assim sendo, uma denúncia produzida e subscrita pelo procurador-geral, juridicamente consistente e bem circunstanciada, adquire materialidade e tem um grau de seriedade muitos degraus acima do que existia enquanto o assunto estava no âmbito do Congresso. Até ali o presidente Lula podia dar-se ao luxo de desprezar as acusações e até mesmo disseminar a versão de que tudo se tratava de uma irresponsável "conspiração das elites". Agora não dá mais. A não ser que se imagine que o MP tenha passado a fazer o jogo dos supostos conspiradores e que seu chefe, o procurador-geral - nomeado pelo próprio Lula -, se tenha engajado no complô.

Agora que os fatos estão oficialmente comprovados, a pergunta que não cala é a seguinte: Lula sabia?

Se sabia e nada fez, ele pode e deve ser denunciado como conivente e cúmplice do escandaloso aliciamento de deputados. Se de nada sabia, passa atestado de absolutamente incompetente para o exercício de posições de mando. Não há uma terceira alternativa. E ambas põem o presidente em condição insustentável.

Já vivenciei a proximidade do poder em diversas ocasiões e considero praticamente impossível que o presidente não tivesse conhecimento de um escândalo que se formava no mesmo palácio onde trabalha. Mesmo na improvável hipótese de que José Dirceu, então ministro-chefe da Casa Civil e considerado pela denúncia do MP o "líder da quadrilha criminosa", estivesse operando sem o conhecimento de seu chefe, o presidente, é impossível que este não fosse informado por alguém do que se passava.

Explica-se. No ambiente de uma corte existe sempre um ferrenho jogo pelo poder. Grupos rivais, "panelinhas", assessores ambiciosos, todos querem ganhar a amizade e a confiança do rei e se valem dos mais inescrupulosos expedientes para consegui-lo. Se Dirceu agia às escondidas, não faltariam cortesãos para intrigá-lo aos ouvidos de Sua Majestade. O rei, por sua própria condição, tudo sabe. Dada a mecânica do poder, jamais lhe faltam informantes. Além do mais, o presidente não convive apenas com sua corte. Diariamente ele recebe inúmeros líderes políticos, de facções rivais, todos eles ansiosos por lhe mostrar serviço. É o caso, por exemplo, do ex-presidente do PTB Roberto Jefferson, que declarou explicitamente ter comunicado a Lula tudo o que se passava. Não há de ter sido nem o primeiro nem o último a fazê-lo.

Lula sabia, sim. Pode não ter sido o mentor do processo, mas permitiu que este tivesse continuidade porque lhe era bastante proveitoso. A troco de que se gasta dinheiro para aliciar parlamentares? Pelo simples prazer de vê-los agradecidos? Não. O suborno de deputados tem como único objetivo obter no Congresso uma maioria confortável para aprovar os projetos do governo. E quem é o governo? É uma equipe de apoderados comandada pelo próprio presidente da República. O beneficiário último dessa compra de consciências era ninguém menos que Lula.

Em todos os governos, em qualquer época, é indispensável a figura do "mão suja". Maquiavel, em O Príncipe, já falava sobre isso. O "mão suja" é o indivíduo que faz todos os serviços escusos necessários à manutenção do poder, mas que não ficaria bem o soberano fazer. O príncipe dá todo o respaldo para o "mão suja" agir, mas não se compromete abertamente com suas ações. Em casos extremos de crise, cabe ao "mão suja" o papel de fusível: ele queima antes para, assim, proteger o aparelho principal. Maquiavel cita o caso de um soberano que se valeu de um cruel chefe de polícia para promover o assassinato de todos os seus desafetos. Quando o povo não agüentava mais a opressão, o príncipe mandou executar o próprio chefe de polícia e, assim, voltou a ser amado pelos súditos.

Dirceu, tal qual o chefe de polícia de Maquiavel, prestou serviços inestimáveis ao presidente e, como ele, foi cruelmente executado tão logo a crise explodiu.

Lula sabia, sim. E nada fez porque o esquema o beneficiava.

Resta saber até quando o povo vai continuar amando tão sórdido príncipe.