Título: Intervenção de Chávez ameaça a integração, diz Amorim
Autor: Lu Aiko Otta
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2006, Economia & Negócios, p. B1

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro, em conversas privadas, aos presidentes da Bolívia, Evo Morales, e da Venezuela, Hugo Chávez, que não gostou nem um pouco da atuação de ambos no episódio da nacionalização do gás boliviano. Essa reação de Lula, bem diferente do discurso oficial, foi revelada ontem pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, na Comissão de Relações Exteriores do Senado.

As palavras duras do presidente, segundo Amorim, ficaram restritas aos bastidores para evitar que, acuado, Morales "radicalizasse" nas negociações com a Petrobrás ou se alinhasse de vez com Chávez. Uma atitude mais "estridente" do Brasil também poria em risco o projeto de integração regional, que é caro ao governo. Em contrapartida, esse risco foi criado por Chávez ao disponibilizar funcionários venezuelanos para ocupar cargos nas refinarias da Petrobrás. " O presidente Lula foi muito franco e disse a Chávez que sua atitude compromete o projeto do gasoduto e a integração sul americana", disse o ministro.

O desfecho da crise, segundo Amorim, não será rápido. As negociações que começam hoje na Bolívia sobre o preço do gás e a compensação que a Petrobrás tem a receber pela nacionalização de seus ativos serão "longas e complicadas". "Não vai se resolver facilmente", afirmou.

Ele lembrou aos parlamentares que a Bolívia passa por um processo eleitoral importante para a Assembléia Constituinte, em julho, e abordou uma questão não menos polêmica para os bolivianos: a instabilidade do país. Destacou que a Bolívia teve quatro presidentes nos últimos três anos do governo Lula. Um deles foi Carlos Mesa, que perdeu o mandato justamente por causa da regulamentação da Lei dos Hidrocarbonetos.

Amorim deixou de lado a diplomacia ao considerar "adolescente" a decisão de Evo Morales de pôr o Exército nas portas das refinarias da Petrobrás e classificou o ato de "desnecessário" e "espetaculoso". Para ele, Evo agiu dessa forma por motivações eleitorais.

Durante cinco horas, Amorim ouviu duras críticas dos senadores à atuação do Brasil porque o governo optou pela defesa da decisão boliviana, em detrimento dos interesses econômico e financeiro da Petrobrás. Como defesa, explicou que o episódio vem sendo conduzido em dois níveis. No público, ficam as palavras amenas do governo brasileiro. "A política brasileira nunca será do porrete, será sempre a da boa vizinhança", disse. Nos bastidores, a conversa é mais dura. "Foi transmitido a Chávez nosso desconforto e o desconforto pessoal do presidente Lula, de forma inequívoca, com as ações praticadas."

O presidente teria dito a Chávez que a presença de funcionários da estatal venezuelana de petróleo, a PDVSA, nas refinarias da Petrobrás colocava em dúvida o projeto do megagasoduto que trará gás venezuelano até a Argentina, passando pelo Brasil. Evo tampouco teria sido poupado. "O presidente Lula foi franco com Morales, falou tudo o que tinha de ser dito, expressou toda a nossa decepção."

EXÉRCITO NA PETROBRÁS O senador Jefferson Peres (PDT-AM) disse que a imposição de tropas do Exército na Petrobrás foi um ato "inamistoso" e disse que proporá um voto de censura a Lula por não haver expressado o desagrado do Brasil. Amorim classificou o ato de "adolescente, desnecessário e inconveniente". "Acho que foi um ato de consumo interno", disse Amorim, referindo-se às eleições na Bolívia. Essa observação teria sido feita por Lula a Morales. "As tropas não chegaram a entrar (na Petrobrás), mas foi desnecessário."

POR QUE NÃO RETALIOU "Se entrássemos numa escalada de retaliações e ameaças, despertaríamos irracionalidades do outro lado." No momento, avaliou Amorim, há um canal de negociações aberto. Descontando as "estridências" e "atitudes crispadas", não houve ainda nenhuma medida com "impacto insuperável" para o Brasil. Ele acha que uma atitude mais dura até renderia dividendos políticos a Lula, mas não seria bom negócio. Supondo que fosse verdade que Evo tem sido manipulado por Chávez, o quadro se agravaria.

CHÁVEZ Um dos pontos mais criticados pelos senadores foi a presença de Hugo Chávez na reunião de Puerto Iguazú, na semana passada, onde a nacionalização foi discutida com a presença também do presidente argentino, Néstor Kirchner. Brasil e Argentina são compradores do gás boliviano. Os senadores questionaram o que Chávez fazia na reunião e levantaram a suspeita de que estivesse influenciando Evo. "A questão da Bolívia não pode ser analisada sem levar em conta a integração energética da região", disse Amorim. Ele lembrou que Venezuela e Bolívia têm as maiores reservas de gás do continente. Por isso, a presença de Chávez era necessária. "Ajudou o presidente Morales a ver que é de seu interesse um convívio racional", comentou, considerando positiva a atuação de Chávez.

MARCO AURÉLIO GARCIA Segundo Amorim, o papel do assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, não se confunde com o seu. "Há coisas que o Marco Aurélio Garcia faz que eu não poderia fazer." Um exemplo: contatos com políticos de oposição. Como chanceler, Amorim só poderia fazê-lo de forma muito discreta para não melindrar o partido do governo. Já Garcia tem mais liberdade para manter esses diálogos. Amorim disse que Garcia não está no comando das negociações com a Bolívia.

NACIONALIZAÇÃO A nacionalização do gás na Bolívia não pegou o governo de surpresa. "Qualquer presidente que fosse eleito na Bolívia teria dificuldades em não instaurar a lei", disse Amorim. O que surpreendeu foi a forma como a Bolívia implementou a lei. A Petrobrás,durante o governo Lula, investiu apenas US$ 100 milhões naquele país, quando precisaria investir perto de US$ 700 milhões ao ano. "Foi uma atitude de prudência."

LIDERANÇA DO BRASIL "A liderança se exerce pela atitude", disse Amorim, diante das afirmações dos senadores de que o País teria perdido a liderança da região para a Venezuela. Segundo ele, o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, buscou aconselhar-se com Lula quando seu país entrou em crise. No episódio do gás, empresas afetadas como a British Gas e a Repsol estão se alinhando à posição brasileira. "A Petrobrás vai liderar o processo", afirmou.

DESINTEGRAÇÃO "Não controlamos a realidade", disse Amorim sobre o quadro tenso na região. "Há inquietação na América do Sul e temos de trabalhar pelo diálogo." Na avaliação de Amorim, a eleição de Evo foi boa para a Bolívia. "É algo que não está sob nosso controle." Tampouco dependeu do Brasil a eleição de Hugo Chávez na Venezuela ou a possível vitória de Álvaro Uribe nas eleições da Colômbia. Ele lembrou que o Brasil atuou dentro de seus limites quando surgiu a ameaça de conflito entre Colômbia e Venezuela. A relação do Brasil com a Argentina está boa, disse ele.

INTEGRAÇÃO "Não queremos que se crie um eixo Venezuela-Bolívia. O único eixo que faz sentido é o que una toda a América do Sul. Para isso, é preciso manter o diálogo."

URUGUAI O Uruguai não poderá ficar no Mercosul se fizer um acordo com os Estados Unidos, disse Amorim. Mas ele reconheceu que o Brasil errou ao não dar mais assistência aos sócios menores do bloco (Paraguai e Uruguai). Pelo contrário, nos últimos anos, o País cortou pela metade, de US$ 1 bilhão para US$ 500 milhões, suas importações do Uruguai. "Eu, se fosse uruguaio, também estaria desiludido com o Mercosul."

FANTASMAS O senador Jefferson Peres alertou que, diante da reação tíbia do Brasil, Evo Morales pode se sentir inspirado a retomar o território do Acre (que já pertenceu à Bolívia) e ainda ser brindado com a abertura das negociações. Na mesma linha, o senador Agripino Maia (PFL-RN) disse que há risco de o Paraguai decidir tomar a Usina de Itaipu. Para Amorim, essas avaliações são "figuras de retórica".

MUNDO PERIGOSO Amorim alertou aos senadores que episódios como o da Bolívia poderão se repetir porque empresas brasileiras estão investindo no exterior e nem sempre em países politicamente estáveis. Ele citou como exemplo a Vale do Rio Doce, que tem planos para países na África. Tomando emprestadas palavras do presidente da Vale, Roger Agnelli, Amorim afirmou: "Petróleo não tem na torre Eiffel. Manganês não se acha na Quinta Avenida", disse. "Precisamos nos preparar."

TERRAS Amorim disse ainda que o governo brasileiro está fazendo "o possível" para defender os interesses dos agricultores brasileiros. As indicações da Bolívia até o momento são de que brasileiros não serão prejudicados, pois a intenção é desapropriar terras improdutivas, o que não é o caso das fazendas de soja.