Título: Bolívia já pediu aumento. Brasil disse não
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2006, Economia & Negócios, p. B3

Um dos primeiros capítulos do conflito entre Brasil e Bolívia sobre o preço do gás envolve dois personagens que hoje estão fora de cena - a ministra Dilma Rousseff, encarregada da Pasta de Minas e Energia até assumir a Casa Civil, e o ex-ministro Guillermo Torres Orías, ministro dos Hidrocarburos no governo de Carlos Mesa, presidente da Bolívia antes da posse de Evo Morales. Ali, os bolivianos pediram aumento. Ali, os brasileiros disseram não.

Guillermo Torres recorda que várias vezes falou à ministra da necessidade de aumentar o preço. "Eu dizia que o preço estava muito baixo e que não poderíamos permanecer assim. Precisávamos fazer um ajuste e chegar a um preço justo, que pudesse ser mantido ao longo do tempo."

Conforme Guillermo Torres, engenheiro respeitado no país que se refere à ministra brasileira com palavras sempre elogiosas, Dilma nunca fechou as portas para uma conversa sobre o assunto, mas não mostrava a mais leve disposição para ir em frente nas discussões.

"Dilma sempre foi uma autoridade preparada, respeitadora. Mas quando falávamos em aumento, dizia que, se houvesse reajuste, não poderia ser muito grande, pois, nesse caso, não valeria a pena estimular o uso do gás natural como matriz energética. Citou também o caso da Argentina, que acabou criando uma dependência do gás boliviano do qual não teria como sair."

As conversas nunca chegaram a números nem porcentagens. Os dois tiveram uma última conversa em abril do passado. Dilma foi para a Casa Civil. Com a queda do presidente Carlos Mesa, Guillermo Torres foi para sua residência nas cercanias de La Paz.

Na última conversa, lembra, os dois falaram sobre preços e, mais uma vez, colocaram-se em campos opostos. "Minha impressão é que Dilma defendia uma estratégia segundo a qual o gás boliviano interessava desde que custasse pouco." (Com problemas de agenda, Dilma não pôde dar entrevista com mais detalhes sobre o episódio.)

Guillermo Torres, espectador bem informado, considera justa a reivindicação do presidente Evo Morales, de aumento de 60% no preço do gás. "É o justo, embora todo mundo saiba que os negócios não são feitos para produzir justiça nem fazer bem às pessoas, mas para gerar dinheiro."

Torres considera que o governo boliviano tem um ponto forte no contrato de compra e venda de gás, que prevê reajustes automáticos a cada três meses, conforme flutuações no preço de outros três derivados de petróleo. Mas o contrato também contém uma cláusula de correção, pela qual esse reajuste só serve para definir 50% do preço novo - os outros 50% são definidos pelo preço anterior. Por isso, os preços sobem mais devagar. Entre 2001 e 2004, por exemplo, o petróleo subiu mais de 70%. O gás natural subiu 43% e o gás que a Bolívia vende ao Brasil subiu 23%. "Se você fosse corrigir esse mecanismo, acabaria vendendo o gás por um preço semelhante ao que o presidente está querendo", diz.

Quando fala sobre o decreto de nacionalização, o ex-ministro recorda uma verdade da vida pública: "É fácil fazer um decreto. O difícil é garantir que seja cumprido." Acha que o governo da Bolívia deve fazer o possível para conseguir o melhor reajuste possível "nem que seja através da arbitragem internacional". Para Torres, agora trata-se de política. "Os bolivianos derrubaram três governos para chegar até aqui. Ou se faz alguma coisa, ou tudo vai começar de novo."