Título: Oratória inimputável
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/04/2006, Nacional, p. A6

Avaliação de Lula sobre sistema de saúde agride seu eleitorado preferencial

A falta de preocupação com o conteúdo dos seus discursos e a natureza "quase lógica" de seus argumentos são características já bem marcadas do modo Luiz Inácio da Silva de se expressar.

Causou espécie nos primeiros dois anos de governo, mas depois, com o acúmulo de questões mais graves a serem tratadas, as falas presidenciais foram relegadas a um segundo plano, não obstante a produção substanciosa de extravagâncias.

Seguia o País nesse ritmo de aceitação entre generosa e enfastiada quando nesta semana o presidente da República resolveu chacoalhar as mentes entorpecidas, como se quisesse lembrar ao País que sua capacidade de se superar é inesgotável, não se restringe à manutenção de bons índices de popularidade apesar dos escândalos.

O Brasil "não está longe de assumir a perfeição no tratamento de saúde", disse, manifestando ou total indiferença pelas agruras cotidianas de seu eleitorado preferencial - aquele mais dependente do sistema público de atendimento -, ou a convicção íntima de que realmente é inimputável, seja nos atos ou nas palavras.

Pode dizer ou fazer qualquer coisa sem a menor conseqüência.

A fim de exaltar seus presumidos feitos governamentais, o presidente da República agrediu forte uma realidade da qual se mostrou distanciado, mas que infelicita milhões de pessoas desprovidas de acesso a planos de saúde e reféns da carência do sistema público. Gente que leva meses para conseguir uma consulta, horas para obter um atendimento de emergência e convive diariamente com as privações mais elementares.

Essa carestia de sensibilidade do presidente poderia ser analisada de forma mais branda, atribuída até à "força de expressão" acidental, não fossem os outros incontáveis exemplos de que Lula acredita na força de seu dito carisma como valor absoluto, dispensando todos os demais.

No referido discurso, feito quinta-feira em Porto Alegre, em inauguração de um hospital, o presidente falou da proximidade da perfeição brasileira na assistência pública de saúde relacionando-a com programas de saúde bucal e atendimento domiciliar; iniciativas positivas, sem dúvida, mas ínfimas no universo das deficiências, para dizer o mínimo.

Ninguém cobra de Lula a resolução instantânea de uma mazela estrutural. Mas, quando se superestima de maneira fantasiosa num tema atinente à sobrevivência da maioria, se expõe à reação e à cobrança do eleitorado que lhe será indispensável para tentar obter um segundo mandato para, quem sabe, levar o Brasil a atingir de vez a perfeição.