Título: A página continua aberta
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/04/2006, Notas e Informações, p. A3

Parece prematura a satisfação do governo com o desempenho do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos na sabatina de quinta-feira perante a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Nada garante que a fala do ministro tenha "virado a página", como se ouviu no Planalto, da sórdida tentativa de incriminar o caseiro Francenildo Costa para desacreditar o seu testemunho sobre a presença do então ministro Antonio Palocci na casa de má fama onde nunca teria posto os pés.

Na realidade, em que pese a sua extensa milhagem como advogado criminalista em tribunais de júri, Bastos não conseguiu dar um depoimento a salvo de buracos - dos quais o mais fundo talvez nem seja a sua versão para a iniciativa de levar a Palocci o colega Arnaldo Malheiros, o que só se viria a saber pela imprensa. Não é a primeira vez que o ministro intermedeia serviços advocatícios para petistas em apuros. Entre os clientes de Malheiros estão o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares e o ex-secretário Sílvio Pereira.

Bastos alega que "cumpriu um dever" ao indicar Malheiros a Palocci - quatro dias antes da queda do ministro, afinal indiciado por quebra de sigilo bancário, violação de sigilo funcional, denunciação caluniosa e prevaricação. Ele agiu no cumprimento do dever - mas não propriamente com o colega de Esplanada, de quem se proclama amigo. A sua conduta ao longo de todo o escabroso episódio deixa inequivocamente claro que tampouco o objeto primeiro do seu dever, como compete ao titular do Ministério da Justiça, tenha sido a busca da verdade e a proteção da lei.

É ao presidente Lula que ele serve, por lealdade pessoal e pela ética de um ofício que impõe aos seus praticantes a obrigação de defender os seus clientes ao limite das possibilidades, mesmo os acusados dos crimes mais nefandos. Bastos protesta quando o chamam, por exemplo, "advogado-geral do Lulão", um jogo de palavras com advogado-geral da União. Infelizmente para ele, os fatos tiram o ar do seu argumento de que jamais cometeu um deslize no caso, nem maculou os seus deveres - palavras suas à CCJ. A sua preocupação em preservar o presidente de tamanho escândalo data da primeira hora.

Mal a revista Época havia divulgado na internet, no começo da noite de 17 de março, os extratos vazados de Francenildo, Bastos disse ao Estado, em Rondônia, que não havia a menor razão para a Polícia Federal investigar o assunto, pois ela não se prestaria a uma "exploração política" visando ao titular da Fazenda, alvo de um hipotético "ataque especulativo". Na mesma linha, repeliu de partida a idéia de falar ao Congresso. Mas em breve se deu conta de que defenderia Lula melhor mudando de atitude - e, mais do que ninguém, advogou pela saída imediata de Palocci.

Àquela altura, porém, já se sabia que, na véspera do vazamento, quando ordenou a devassa na conta do caseiro, Palocci chamou a sua casa o secretário de Direito Econômico, Daniel Goldberg. Pediu-lhe - e Goldberg informou isso ao chefe de gabinete do ministro, Cláudio Alencar - para ver se seria possível abrir um inquérito contra Francenildo a partir de uma reportagem que sairia no Globo sobre a sua situação financeira. Tenham os seus colaboradores posto o ministro a par do pedido, ou não, o fato é que consultaram a Polícia Federal e levaram a Palocci a resposta negativa.

Ora, a mera aquiescência desses dois altos funcionários federais à descabida solicitação, como destacou ontem neste jornal a colunista Dora Kramer, prova que "o governo se mobilizou para tentar desmoralizar" o caseiro. Bastos apenas teria cumprido o seu verdadeiro dever se os demitisse. Mas não: fez saber que, se Goldberg fosse indiciado, ele é que se demitiria. E, diante da CCJ, se desencontrou da verdade pelo menos em dois momentos importantes - abrindo os buracos referidos no início deste texto.

Bastos lembrou que acionou a Polícia Federal meros dois dias após o vazamento dos extratos. Omitiu, porém, que ela foi chamada para investigar Francenildo por "lavagem de dinheiro": originalmente, a violação era apenas a terceira prioridade do inquérito. Tanto que só foi aberto depois do recebimento do suspeitíssimo ofício em que o Coaf alertava para supostas irregularidades na conta de Francenildo - e não, como quis fazer crer o ministro, antes disso. Fará bem o Senado, como pretende a oposição, se também sabatiná-lo. E fará bem o governo se contiver o seu regozijo.