Título: Doha acabou. Vamos começar de novo?
Autor: Alberto Tamer
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2006, Economia & Negócios, p. B5

As negociações conhecidas como Rodada Doha sofreram mais um abalo com a súbita e inesperada substituição de Robert Portman, negociador americano já muito entrosado no assunto, por uma senhora conhecida como mais dura, Susan Schwab. Se tudo já ia mal, agora piorou. Doha e seus prazos já eram. Agora, segundo Roberto Giannetti da Fonseca, diretor da Fiesp e um expert em comércio internacional, é renovar o ânimo negociador de todas as partes "pois no momento atual, se não morreu, está em "coma induzido".

A propósito é bom relembrar a origem do que se chama Rodada Doha, para melhor compreensão do leitor. É o conjunto de negociações para abertura de mercados e definição de novas e mais justas regras multilaterais de comércio sob as asas da Organização Mundial do Comercio (OMC). O nome advém da reunião realizada em 2001 no Catar, na cidade de Doha, onde essas negociações tiveram início e hoje, mesmo sendo conduzidas na sede da OMC em Genebra(Suíça), mantêm o nome. Houve muitos vaivéns, com mais atrasos do que progressos e estamos, agora, diante de um desafio: ou se desiste de tudo e lá se vão cinco anos perdidos ou se recomeça com novos prazos e novas bases.

A coluna conversou com Roberto Giannetti da Fonseca, que havia feito um excelente trabalho quando foi chamado para o governo mas preferiu sair diante dos impasses burocráticos e indefinições eternas que levavam a nada.

Aqui vão alguns dos trechos da nossa entrevista:

Temos dito que a Rodada Doha já morreu, foi enterrada e não aceita visitas... Na sua visão, ela está mesmo morta?

A Rodada Doha não está morta, mas, se não houver acordo em pouco tempo, ela será colocada em uma espécie de "coma induzido". E, na atual situação, já estamos na ante-sala da UTI, o que não é novidade: impasses estenderam a Rodada Uruguai por 8 anos. Para o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, o jogo agora depende da resolução daquilo que ele batizou como "enigma do triângulo", cujos vértices são: 1) de concessões dos Estados Unidos em subsídios internos agrícolas; 2) da União Européia em tarifas agrícolas; e 3) do G-20, especialmente Índia e Brasil, em tarifas industriais. O Brasil já fez sua parte - agora é a vez de europeus e americanos. E, por enquanto, não vimos nada da parte deles.

E qual é a saída ?

A lógica do triângulo faz com que sejam esquecidas as origens da Rodada Doha. Ao final da Rodada Uruguai, os membros da OMC se comprometeram a negociar novos compromissos em agricultura a partir de 2000. Naquele momento, os europeus disseram que só aceitariam negociar novas aberturas em agricultura no âmbito de uma rodada de negociações. De início, o Brasil foi contra a proposta européia, mas aceitou como um gesto de boa vontade. Aos poucos, o tema de acesso a mercados em bens industriais foi empurrado para o centro da rodada e hoje estão em negociação compromissos mais severos nesta área do que em agricultura. Temos de resgatar o objetivo original da negociação que era a abertura dos mercados agrícolas. A indústria brasileira já aceitou importante corte de 50% nas tarifas industriais e espera reciprocidade dos países desenvolvidos ao aceitarem a proposta do G-20 em agricultura. Os europeus propuseram a rodada e agora devem ser responsáveis com seus compromissos. É importante lembrar também dos compromissos no setor de serviços que estão fora do chamado "triângulo". É um setor com importante papel nas economias dos países e não pode ser deixado de lado. O Brasil tem interesses no setor e devemos voltar a discutir a fundo o tema.

E como os empresários brasileiros encaram esse "coma induzido"?

Diferentemente do que ocorreu em outras negociações, os empresários brasileiros estão coesos na defesa dos interesses de longo prazo do País, atuando em conjunto com órgãos de classe como a Fiesp. Aliás, a Fiesp acompanha de perto cada movimento que se faz nessa área, tendo sempre um representante nas negociações. E sobre isso acho importante lembrar que alguns países tentam produzir uma divisão entre agricultura e indústria na OMC, o que é artificial e não representa a situação real da integração dos setores. A indústria tem todo o interesse em trazer a agricultura de forma plena para as regras multilaterais de comércio e está disposta a fazer as concessões. O que é inaceitável é que mais uma vez a indústria dos países em desenvolvimento faça mais concessões que a agricultura altamente protegida dos países desenvolvidos, ampliando as diferenças entre os setores ao final da rodada. Para os empresários, mais vale uma rodada longa do que um acordo fraco e desequilibrado.

É preciso que se abandonem as posições de neoprotecionismo de americanos e de europeus. Vamos apenas esperar que, desta vez, eles - EUA, União Européia e Japão - busquem consenso entre os países membros da OMC que de fato beneficiem a todos e possibilitem recuperar o objetivo primeiro dessa rodada: comércio para o desenvolvimento, principalmente dos países marginalizados do mundo.