Título: 'O Estado não pode continuar só com 18% dos lucros'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2006, Economia & Negócios, p. B4

País vai exercer o direito de propriedade sobre o gás e o petróleo, garante presidente; negociações estão sendo feitas

Evo Morales, presidente da BolíviaENTREVISTAO cocaleiro Evo Morales, assumiu a Presidência da Bolívia há cerca de três meses prometendo uma revolução econômica e social. Foi a primeira vez que um descendente de índio chegou ao poder no país. Nesta entrevista, concedida na manhã de sexta-feira no Palacio Quemado, sede do governo em La Paz, ele comenta o que já realizou, a crise com empresas estrangeiras e o que a Bolívia e os países latino-americanos podem esperar dele. Ele garante que vai nacionalizar as reservas de gás e petróleo.

Até que ponto estes 100 dias no poder o mudaram, o tornaram mais realista? O que o senhor aprendeu?

Bom, para mim, para nosso movimento, é como um sonho. Não podemos acreditar que somos presidentes. Não que tenhamos poder, mas que sejamos governo. O que buscamos é poder para os povos indígenas, para o movimento popular.

Mas a realidade, sem dúvida, é percebida de um modo diferente a partir da cadeira presidencial.

Nestes três meses, tivemos muitas experiências. Há companheiros, ministros, vice-ministros, colaboradores, que se tornaram bombeiros, para acabar com alguns protestos sociais, e outros que continuam implementando políticas sociais, de mudanças estruturais.

Mas o senhor parece mais pragmático, chegou até a falar em acabar com o carnaval de protestos. O senhor sente que mudou?

Não sei se mudei, o povo dirá se mudei. Continuo sendo o mesmo, só há outro tipo de mudanças porque agora estou em todos os setores, posso estar com os empresários, posso estar com a comunidade internacional e também estou com meus companheiros. Ontem, minha primeira reunião era às cinco da manhã com a Embaixada de Cuba na residência, e aqui era com a confederação de professores urbanos, e depois com os pais de família. E depois estivemos com José Miguel Insulza, à tarde com várias organizações e, à noite, um jantar com o embaixador da China. Diziam-me que o presidente não podia jantar com qualquer embaixador. E lá fui eu, e à noite precisava jogar uma partida de pebolim, mas não houve tempo. Fiquei com o jantar.

Como está a negociação sobre o volume e o preço do gás para a Argentina?

Nosso desejo é aumentar os volumes de exportação não só para a Argentina, mas também para outros países. Também é de nosso interesse aumentar o preço do gás. Falava-se bastante de um preço solidário com a Argentina. Mas gostaríamos que a Argentina fosse solidária conosco. E foi. O presidente argentino e o governo foram muito solidários. Não tenho do que reclamar. Porém, nesta conjuntura, precisamos ter mais excedentes econômicos, aproveitando nossos recursos naturais, e este é o negócio que temos de defender.

O senhor se refere a uma solidariedade às avessas com relação ao preço?

É isso. Vamos analisá-lo, está sujeito ao diálogo, também levando em conta o mercado internacional.

No mercado internacional, a tarifa ronda os US$ 7 por 1 milhão de BTUs, o dobro do que a Argentina paga.

Até agora, não falamos absolutamente nada sobre isso.

Mas o senhor cita como referência o mercado internacional...

Olhe, uma coisa é a Europa, outra os Estados Unidos e outra a América Latina. Em todo caso, deve-se pensar no benefício de nossos países e, se falamos da Argentina, também há muitos irmãos bolivianos que vivem lá. Não podemos ignorar esta situação. O Estado tem de se beneficiar, os povos têm de se beneficiar deste recurso natural e estamos neste processo de nacionalização. E isso também é fundamental para melhorar a situação.

O novo cenário com o Chile, para uma saída para o mar, está vinculado à retomada da possibilidade de exportar o gás por intermédio desse país para mercados como o México ou o conjunto americano?

Há tantos mercados... O primeiro é o mercado interno. Não é possível que aqui nossos indígenas vivam em cima do gás, mas sem gás. Isso tem de acabar. Em segundo lugar, é importante o mercado regional, como o da Argentina. O Chile é um caso especial. Veja, é a primeira vez que o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos aceita acompanhar este processo de busca de soluções entre dois países, Chile e Bolívia, mas acompanhará até que a Bolívia tenha uma saída para o mar com soberania.

Esta reivindicação é inabalável? Não lhe convém um porto chileno para enviar o gás ao México ou a outros grandes mercados?

Em todo caso, não estamos pensando em mercados como o americano ou o mexicano, havendo um mercado interno e um regional. Creio que é importante aproveitar isso. Quero ser muito sincero: estamos muito confiantes no mercado regional.

A que o senhor se refere quando fala em nacionalização?

Exercer o direito de propriedade.

Com expropriação?

Quando falamos em recursos naturais, falamos em exercer o direito de propriedade sobre este recurso natural - seja gás, seja petróleo - na boca de poço, porque os contratos dizem textualmente que o titular - ou seja, a transnacional - adquire o direito de propriedade em boca de poço. Portanto, temos de recuperar o poder, exercer o direito de propriedade em boca de poço. Isto não significa expropriar os bens das empresas. Em todo caso, qualquer empresa tem direito de recuperar seu investimento, de ter um lucro, mas não dá para continuar como antes, com 18% para o Estado e 82% para as empresas. Quem sabe isto deva ser invertido.

Haverá prêmios e castigos? As atitudes com a Petrobrás e a Repsol serão diferentes?

Olhe, antes de exercermos o direito de propriedade, não quero fazer muitos comentários. Mas quero deixar claro que qualquer empresa tem de sujeitar-se às normas bolivianas. Não se trata de expropriar nem de expulsar. Reitero que precisamos de sócios, mas o Estado tem a obrigação de beneficiar-se com estes recursos.

O senhor acha que, com estas políticas, as empresas não perderão?

Estamos convencidos de que elas não terão os lucros de antes, mas terão lucros.

Que resultado vocês obtiveram com as mudanças na legislação petrolífera?

Estamos muito impressionados com o crescimento econômico (o déficit fiscal caiu para 2%). Alegra-me bastante e, embora ainda precisemos ajustar políticas fiscais, vamos melhorar. Além disso, estamos concedendo aumentos salariais para saúde, educação e as Forças Armadas e a polícia nacional. No ano passado, o aumento foi de 3,5%, e agora estamos nos 7%. E alguns companheiros fazem manifestações exigindo 10%. Jamais, nos governos neoliberais, passou-se dos 4%, e agora eles têm 7%!

É este o carnaval de manifestações que o senhor exigiu que terminasse?

Se eles tivessem razões, haveria razões, mas não é assim. Veja a greve dos transportes, que prejudicou a educação por um dia; a greve da saúde, dois dias. Hoje, a Confederação Operária Boliviana, oposta ao governo) diz "Vamos à greve". Mas tenho certeza de que não haverá greve. Talvez alguma passeata. Durante quatro ou cinco anos, nunca houve aumento do salário mínimo, e estamos fazendo isso. E não só isso. Há muita gente sem emprego. Havia um programa que acabou em dezembro do ano passado, deixaram-nos com muita gente sem emprego. Mas nos mobilizamos e conseguimos US$ 47 milhões que vão gerar mais de 100 mil empregos.

O senhor tem demitido vários funcionários por suspeitas de corrupção. Como vai este problema?

Você sabe, todos sabem, o povo boliviano sabe que, se estou aqui, é pela honestidade. Claro, como não tenho formação profissional, pois tenho certas fraquezas em questões financeiras, na parte administrativa. E, embora em três meses eu tenha entendido perfeitamente, ainda não é suficiente. Mas sei bem que cheguei aqui pela honestidade e, depois de tantos anos de militância, todos me conhecem, e é por isso que devo implementar esse tema da honestidade. Mas tem sido muito duro lutar contra a corrupção. A corrupção é muito forte, está muito institucionalizada. Continuaremos avançando, mas se houver suspeitas sobre nossos colaboradores, ministros, vice-ministros, parlamentares, vamos atuar assim.

O caso da EBX, a siderúrgica brasileira (de Eike Batista) que se instalou sem permissão na fronteira, faz parte dessa corrupção?

Uma empresa que se instala ilegalmente na fronteira, inconstitucionalmente e com arrogância, uma empresa ilegal e arrogante que não respeita a Constituição do Estado boliviano - com esta empresa não há negociação. Ou ela se retira voluntariamente ou será expulsa, só há dois caminhos. Porque a Bolívia, finalmente, não é uma terra de ninguém. Somos nós que temos de defender o território, nossa soberania, e felizmente as Forças Armadas nos acompanham.

Afirma-se que a Bolívia perderá mais de US$ 100 milhões em venda de soja à Colômbia por causa do acordo de livre comércio entre este país e os Estados Unidos. Qual a dimensão dessa perda?

Temos vendas garantidas para este ano e o próximo, mas depois teremos complicações. São os tratados de livre comércio. Sem chegar à Bolívia, já nos tiram mercados.

A Colômbia era um grande mercado para vocês?

Não se deve depender de um só mercado. Temos propostas, por exemplo, da China, de um milhão de toneladas, e não temos esta possibilidade de produção. Temos mercados, por exemplo, na Venezuela, em Cuba, que são iniciativas muito solidárias, parte do TCP, o tratado de comércio dos povos em contraposição aos TLC.

Os Estados Unidos estão muito hostis com o senhor? Nestes dias, eles voltaram a negar visto a um de seus vice-ministros.

Os Estados Unidos estão provocando permanentemente. Com Fidel (Castro, presidente de Cuba), quando ele ganhou sua revolução depois do levante armado, a lua-de-mel com os Estados Unidos durou dois anos e três meses. Igualmente, com Hugo Chávez (presidente da Venezuela), mais de dois anos. Mas aqui, nada. Eles pensaram que dominariam, que convenceriam, e se dão conta de que comigo não acontece isso.

Por que isso acontece? O senhor venceu por ampla maioria e o país parece mais controlado e previsível do que no passado.

Veja... (ele busca as palavras). É que eles não nos suportam. É uma discriminação, uma marginalização. A questão dos vistos é um exemplo. Gente comprometida com seu povo não tem visto e gente corrupta que viola os direitos humanos está nos Estados Unidos, protegida, encoberta.

Sua aliança com Chávez poderia ter relação com isso?

Não sei. Quero pedir ao embaixador que me diga quais funcionários não têm visto, que me passem a lista, para avisá-los que não podem viajar e evitem a humilhação de ter o visto negado. Quando ele me informar sobre isso, direi quais personagens não podem entrar na Bolívia. Porque somos um país subdesenvolvido, mas temos dignidade e vamos respeitar nossa dignidade.

O senhor tem uma opinião formada sobre o conflito entre a Argentina e o Uruguai, que está pondo o Mercosul em sério risco?

Bem, não acredito. Quero dizer que é importante a unidade desde a região andina passando pelo Mercosul, uma unidade sólida, com base em nossa identidade sul-americana. Nós apostamos nessa unidade sul-americana. Unidade em função das maiorias nacionais, a comunidade sul-americana. Não é possível que cada um de acordo com seus interesses comece a negociar. Aí valorizo e respeito muitíssimo Fidel, Chávez, Lula, Kirchner. Ele me encantou quando disse que a Argentina não será o tapete dos Estados Unidos. Isto nos anima e creio que é preciso fortalecer a unidade sul-americana.

Que medos o senhor tem?

Medo de que o Tesouro não tenha recursos suficientes. É um tema financeiro, econômico. Fora isso, não tenho outros medos.