Título: 'Brasil é nosso aliado estratégico'
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2006, Economia & Negócios, p. B3

Presidente até o retorno de Evo Morales à Bolívia na quarta-feira, o vice-presidente, Álvaro García Linera, passou os últimos dias ocupado com o governo "de um pequeno país que tenta mudar a roda da História." Visitou campos de gás e refinarias, reuniu-se com empresários, andou por áreas de conflito de terras. No fim de semana, ao receber jornalistas brasileiros em La Paz,ele passou a limpo a disputa aberta entre os dois governos depois da nacionalização do gás e do petróleo.

Linera se diz convencido de que brasileiros e bolivianos vão chegar a um acordo sobre o gás ao final de 180 dias de negociação. Diz que o preço do gás vai subir, mas será fruto de um acordo. Conta que a nova divisão de receitas milionárias nos campos de gás de San Antonio e San Alberto, que reserva 82% da receita para o governo boliviano e 18% para a empresa brasileira, foi uma opção de Evo.

Graças aos jornalistas brasileiros, Linera descobriu, durante a entrevista, que a Petrobrás - alvo de tantos ataques de seu governo - é uma empresa estatal. "Imaginava que fosse uma empresa sob controle privado."

Escolhido para o cargo pelo próprio Evo Morales, Linera é um vice que elabora e manda. Nenhuma decisão importante do governo sai do Palácio Queimado sem seu apoio. Quando ele define o caráter do governo como "pós-neo-liberal, é possível que nem todos os ministros o compreendam, mas concordam. "Aceitamos as leis de mercado, mas queremos maior presença do Estado. Queremos investimentos estrangeiros, mas as empresas instaladas aqui não podem agir como se estivessem numa terra de ninguém.'

Aos 43 anos, García Linera é diplomado em matemática, tem formação de sociólogo e leitura acima da média. Já publicou um calhamaço de 700 páginas onde analisa os movimentos sociais bolivianos. Leitor de Karl Marx, diz prestar mais atenção às análises de O Capital do que aos textos de agitação do Manifesto Comunista.

Ele também mergulha em Max Weber, que explica como o capitalismo funciona, e Pierre Bourdieu, um de seus críticos mais ferozes. Quando comenta o lugar da Bolívia no mundo, Linera emprega imagens que têm uma ponta de auto-heroísmo. "Somos um grão contra a engrenagem do neoliberalismo."

Guerrilheiro tardio, ele iniciou um movimento armado nos anos 90 e ficou cinco anos na cadeia. Ao deixar o cárcere, liderou um núcleo de militantes de esquerda que articulou comunidades e organizações sociais para alimentar um movimento político vigoroso, que produziu protestos e mobilizações de toda ordem até a chegada de Evo Morales ao poder.

A maior parte das idéias que dão o rumo ao governo foram sintetizadas pelo vice. A idéia-chave é usar o Estado para arrancar dinheiro das empresas de gás e petróleo com o argumento de que será entregue aos pobres e abandonados.

Linera defende a noção de que a Bolívia é um país de economia tão atrasada que a única saída é investir num "capitalismo andino", transferindo renda do setor moderno para a pequena propriedade e as empresas familiares. À esquerda, esse projeto é visto como reedição do velho populismo agrário, tão presente entre a esquerda russa nas décadas anteriores à revolução de 1917. À direita, diz-se que não passa de um plágio do petropopulismo do presidente venezuelano Hugo Chávez.

"Queremos a presença do Estado em todo o setor de hidrocarbonetos: pesquisa, exploração, comércio, distribuição" diz Linera. "Essa é a atividade que vai definir nosso futuro nos próximos 30 anos." Essa visão explica o caráter de prioridade absoluta assumido pelas negociações sobre o gás.

Quando ouve dizer que o governo boliviano surpreendeu o planeta com a nacionalização, Linera responde que na campanha eleitoral antecipou medidas como o controle de refinarias. "O decreto em si foi um segredo de Estado", explica. "Mas a idéia de nacionalizar estava clara, inclusive para as empresas de petróleo."

Apesar das semelhanças do governo boliviano com o petropopulismo de Chávez, dentro do governo Linera é visto como voz de resistência ao bailado envolvente do vizinho. "Os laços da Bolívia com a Venezuela são importantes, mas temos outra visão e outra história. Não somos partidários do bolivarianismo. Temos outra visão da América do Sul. Somos continentais. Em matéria de parcerias, não se pode confundir a Venezuela com o Brasil. O Brasil é nosso aliado estratégico, tem o mercado que precisamos e os investimentos que necessitamos para crescer."

Nos bastidores de La Paz, Linera assumiu função curiosa. Lidera a Comuna, facção à esquerda de um governo onde palavras como revolução constituem o alimento de conversas do dia-a-dia e a denúncia anticapitalista dos "lucros exagerados das petroleiras".

Simultaneamente, cabe-lhe cultivar o diálogo com empresários, receber executivos de multinacionais e fazer o possível para manter o prestígio do governo nos meios acadêmicos. Foi assim que assegurou a convocação de uma Assembléia Constituinte a partir de regras que agradaram à oposição e provocaram revolta na própria base, onde é acusado de abandonar o eleitor para garantir a estabilidade do governo. "Ele diz que alguém tem de fazer esse serviço e é melhor que seja ele", diz um membro da Comuna.

Analista político antes de despachar no Palácio Quemado, García Linera sabe muito bem que a classe média pode fazer o governo naufragar ou ter êxito e não quer correr riscos.