Título: Um domingo de cão no Palácio
Autor: Marcelo Godoy ... [et al.]
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2006, Metrópole, p. C1

No início da manhã do domingo em que os policiais de São Paulo tiveram medo de sair às ruas, o governador Cláudio Lembo entrou em seu gabinete às pressas, para conferir o primeiro consolidado do dia dos estragos feitos pelo PCC. Eram 7h45 e os dados mostravam mais de 80 atentados, 49 mortos, 24 feridos e 26 presídios rebelados. Com o papel nas mãos, Lembo determinou que as estatísticas fossem divulgadas diferenciando os policiais dos suspeitos mortos - e se preparou para o seu 44º dia de governo. Depois de assumir cercado pela perspectiva de nove meses de calmaria e cofres cheios, Lembo deparou-se com a maior ofensiva do crime organizado já enfrentada no País e a maior crise na Secretaria de Segurança Pública já registrada no Estado. O tempo inteiro, fincou pé na tentativa de aparentar tranqüilidade. Mas teve um domingo de cão.

Sentado na cadeira de madeira que pertenceu a seu pai - e que há anos leva para todos os escritórios que ocupa -, Lembo passou boa parte do dia em um gabinete transformado em central de informações sobre a batalha contra o crime organizado em curso longe dos jardins do Palácio dos Bandeirantes. Às 8h50, o placar da guerra urbana apontou 28 unidades prisionais rebeladas. Às pessoas de fora do governo que começaram a ligar, ele repetiu o mantra: " a situação está sob controle". Às 9h10, a soma chegou a 30 - e ultrapassou o marco histórico de 2001, quando o governador Geraldo Alckmin foi desafiado com 29 rebeliões simultâneas da região metropolitana e interior. Uma afronta ao aparelho estatal, definiu o governador. "Nossos policiais andam com as armas que são legalmente permitidas para eles . Os criminosos roubam metralhadoras das Forças Armadas e passam armamentos pelas fronteiras. É uma guerra da lei contra a má vida", disse.

Nas horas seguintes, os números continuaram subindo - e assustadoramente. Lembo manteve sua agenda. Recebeu o secretário dos Transportes, Dario Rais Lopes, sentado no sofá verde do gabinete. Conversou rapidamente sobre maneiras de estabelecer parcerias com a iniciativa privada para asfaltar estradas. Em seguida, levantou para entrar no helicóptero que o levaria até uma solenidade pública nas Marginais. No evento, disse que recusou oferta de ajuda da Polícia Federal e afirmou que não pretende defenestrar o comando da Segurança Pública.

Menos de uma hora depois, estava de volta ao Palácio. Falou ao telefone - pela sexta vez no dia - com o comandante-geral da PM, coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, o secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. A essa altura, os números informavam: 59 presídios e CDPs rebelados. A contagem de mortos durante os ataques noturnos já mostrava 52 vítimas. Ligou para o secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho. Em todos os telefonemas, ouviu mais do que falou. "A estratégia já foi definida. Agora é acompanhar", disse.

O Dia das Mães foi tomado por um clima de "São Paulo contra o crime" - e a sede do governo continuava a receber os números do terror via fax. As estatísticas eram enviadas pelo comando da PM e recebidas pelo ajudante de ordens do governador, o capitão José Carlos de Campos.

Com os papéis nas mãos, o capitão corria pelas escadarias até o andar térreo e os levava para a assessoria de imprensa. Os números eram somados e cotejados com os que eram enviados pela Secretaria de Segurança Pública. Na volta de uma dessas pequenas viagens, o capitão deu a ordem para um soldado: "avise aos PMs que estão no Palácio para tentar permanecer nas guaritas. Não é para ficar se expondo muito na rua". Na noite anterior, Lembo havia pedido a retirada do bloqueio na frente do Palácio - para reforçar a aparência de normalidade que acredita que deve ser mantida por um homem público em momentos como esses.

Às 11h30, eram 64 unidades prisionais rebeladas. "O importante para ver nesses dados é que na imensa maioria não são rebeliões com quebra-quebra e feridos. São motins feitos durante a visitação do Dia das Mães, para marcar presença", analisou o governador. Minutos depois, chegou ao gabinete o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab - responsável pela indicação de Lembo na chapa para vice de Alckmin. Durante 40 minutos, ambos conversaram sobre a extensão da crise. "Vim prestar minha solidariedade total ao governo do Estado em suas ações", afirmou o prefeito. Antes de sair, Kassab foi levado pelo governador para ver as reformas no auditório Ulysses Guimarães. O diálogo até teve algumas piadas - "vamos colocar uma bandeira grande do PFL", disse o governador. Mas o clima era tenso. "Estamos em estado de alerta máximo. E nosso estado de espírito é esse também", definiu Kassab.

Às 12h30, os números enlouqueceram. O fax da ante-sala do gabinete do governador continuou apitando e cuspindo folhas que mostravam outras unidades rebeladas. Pelas contas iniciais, eram 70 - mas àquela altura não se sabia ao certo quantos motins estavam sob controle, e mesmo se havia informações repetidas na página. O governador entrou na ala residencial do Palácio, onde a primeira-dama, Renéa de Castilho Lembo, esperava pela chegada do filho, José Antônio Salvador, para mandar servir o almoço. "O Cláudio não dormiu na noite de sexta e, na de sábado, conseguiu pegar um pouco no sono. E eu fico pensando nas mães e mulheres desses policiais mortos. Uma covardia...", disse ela.

OTIMISMO ZERO

O governador com maior experiência em costuras políticas de bastidores do que no mundo administrativo - e que assumiu para continuar um mandato e pegou pela frente uma crise sem precedentes -, passou o resto do domingo acompanhando os passos de seu secretariado, sendo informado sobre as dezenas de velórios e enterros de policiais que pipocavam pela cidade e perguntando pelos detalhes das operações de prisões realizadas durante a noite - uma delas levou para a cadeia 77 integrantes do PCC que comemoravam as operações do dia em uma festa, armados com metralhadoras.

"É uma guerra muito difícil. A legislação penal é dos anos 40, uma lei feita para um céu azul. Para o governo, trata-se agora de lidar com coisas como ver um policial militar, que faz trabalho comunitário e fica em uma guarita prestando serviço à população, ser metralhado por garotos com dívidas com traficantes. Eu digo o seguinte aos integrantes do PCC: voltem à legalidade, voltem à vida cidadã - porque São Paulo não vai se curvar".

Até o final da tarde, as estatísticas continuaram refletindo a confusão na Segurança Pública - subindo, descendo e aparecendo desencontradas. Às 18h25, os dados mostravam rebeliões em 59 unidades, mais de 100 reféns e de 100 ataques desferidos contra policiais. Ainda monitorando a crise de seu gabinete, trocando mais uma bateria de telefonemas com seu secretariado, o governador continuava a dar garantias de tranqüilidade. Mas já não tinha esperanças de que o domingo terminasse livre da crise. "Eu não seria tão otimista de esperar que nessa madrugada não aconteça mais nada...".