Título: As vítimas esquecidas da radiação
Autor: Jamil Chade
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2006, Vida&, p. A28

Duas décadas após explosão da usina de Chernobyl, só agora muitos habitantes da região são atendidos por médicos

Na quarta-feira, o mundo relembra os 20 anos do maior desastre nuclear da história. Era 26 de abril de 1986 quando o reator número 4 da usina de Chernobyl, a menos de 100 quilômetros de Kiev, capital da ex-república soviética Ucrânia, explodiu.

As autoridades levaram dias para reconhecer o acidente e, segundo declarações do próprio ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev a jornais nos últimos anos, Chernobyl acelerou a queda da União Soviética, em 1991. O acidente, porém, até hoje gera conseqüências para as populações da Ucrânia, Bielo-Rússia e Rússia, regiões mais afetadas pela poeira radioativa que se espalhou por centenas de quilômetros durante dias.

Duas décadas depois da explosão, muitos moradores da zona rural da Ucrânia nem sequer foram examinados por médicos. Enquanto isso, as Nações Unidas, organizações não-governamentais e governos travam uma guerra na mídia para determinar o número de pessoas afetadas pelo acidente. "O que interessa agora é que as vítimas esquecidas do desastre nuclear sejam atendidas", afirma Jon Lowry, representante da Federação Internacional da Cruz Vermelha.

Angela Korbut tinha 18 anos quando o acidente aconteceu. Ela faz parte desse grupo de pessoas abandonadas pelas autoridades. Foi apenas na última sexta-feira, quando os ortodoxos iniciaram a celebração de sua Páscoa, que a moradora do vilarejo de Volodarsk-Volinsky conseguiu pela primeira vez ser examinada por uma equipe da Cruz Vermelha. Isso já aos 38 anos.

O resultado não foi positivo e mostrou graves deformações em sua tireóide, sinal de um possível câncer. Segundo especialistas, o número de pessoas com câncer de tireóide na região ainda não se estabilizou e deve continuar crescendo nos próximos cinco anos.

Assustada, a moradora do vilarejo de 7 mil habitantes e a 120 quilômetros a oeste de Chernobyl, conta que, na época da explosão, a única coisa que deixou de fazer foi comer cogumelos nos bosques perto de casa. "Não tínhamos quase informações", afirmou ao Estado, ainda dentro da sala de atendimento e sem saber o que faria com a notícia da possível doença.

ZONA QUASE MORTA

Volodarsk-Volinsky, com poucas ruas e suas casas modestas, não fica na área conhecida como "zona morta" - um raio de 30 quilômetros criado a partir da usina. Mesmo assim, até hoje é considerada área contaminada. O governo local estipulou que os habitantes poderiam permanecer na região, mas muitos vilarejos nunca foram visitados por médicos especializados.

Pelas estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), 7 milhões de pessoas ainda vivem em áreas consideradas contaminadas. Para a Cruz Vermelha, não adianta mais propor que as pessoas abandonem suas casas.

Volodymyr Sert, médico da Cruz Vermelha que examinou Angela, conta que casos de pessoas esquecidas pelos médicos do governo nos últimos 20 anos são freqüentes. "Em muitos lugares ainda encontramos pessoas que nunca foram examinadas", revela. Nos últimos dias, Sert e sua equipe se instalaram no vilarejo e já detectaram que, de 200 pacientes examinados, 71% têm algum distúrbio na tireóide e 21% já são considerados casos de câncer.

Segundo um relatório feito pela ONU, algumas das conseqüências do pior vazamento de material radioativo na história estão longe de um fim. Mas a organização estipula que as vítimas do acidente não foram tantas como se temia. Cerca de 5 mil pessoas já morreram ou vão morrer, segundo a ONU. A ONG Greenpeace contesta a afirmação e aponta que o número de vítimas poderá ser de cerca de 100 mil nos próximos anos.

Apenas na Ucrânia, entidades de pesquisa estimam que os mortos ultrapassarão a marca dos 30 mil. Para a Cruz Vermelha, o debate para saber quantos ainda morrerão é "inútil". "Há pessoas vivendo em áreas infectadas e temos de nos concentrar em salvá-las e não em torná-las vítimas", afirmou Lowry.

EFEITOS PSICOLÓGICOS

Tanto a Cruz Vermelha como a ONU concordam pelo menos em um aspecto: os efeitos psicológicos do acidente na população local foram subestimados e precisam ser atendidos de forma urgente.

Muitos vivem em um constante estado de incerteza. O veneno invisível que representa a radiação acaba gerando reações como alto grau de ansiedade e stress. "Há um sentimento de que estamos condenados a uma morte prematura", afirmou um especialista do Laboratório Internacional de Chernobyl, entidade criada para estudar os efeitos do acidente.

Por mais surreal que pareça para um paciente em outras condições, a notícia sobre o possível câncer não é considerada sempre como negativa para certos moradores da região. "Agora pelo menos tenho informações do que ocorre e poderei tomar decisões", resigna-se Angela Korbut.

A confusão nas mentes dos moradores foi ainda maior diante de políticas estabelecidas na época que colocavam os habitantes da região infectada como inválidos.

"Primeiro, disseram a esses moradores que deveriam permanecer em suas casas e evitar as ruas. Depois, as autoridades pediram que todos saíssem o mais rápido possível de suas casas, mas que voltariam em poucos dias. Finalmente, cerca de 340 mil nunca puderam retornar a seus lares", completou um funcionário da Cruz Vermelha.