Título: "Lula não tem obsessão de mudar o País"
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2006, Nacional, p. A16

Ex-ministro da Educação diz que o que vai matar o PT não é a corrupção, mas a incapacidade dos petistas de se indignar

Cristovam Buarque, senador (PDT-DF)EntrevistaO presidente Luiz Inácio Lula da Silva "não tem nenhuma obsessão de mudar o Brasil" e o PT já mostrou os seus limites, "pois é um grupo que nasceu não de pobres ou excluídos, mas de setores já organizados dos trabalhadores". No poder, ele não tem um projeto: vê o País pelos olhos desses grupos dos quais se originou, como o funcionalismo, as cúpulas sindicais, as universidades, "e enquanto isso o resto do mundo faz uma revolução na educação e vai se distanciando". O alerta é do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), ex-ministro da Educação, hoje um oposicionista decepcionado com o descaso do Planalto pelo ensino fundamental. Para Buarque, o PT "é um partido velho, que ainda acredita na contradição entre capital e trabalho, sem se dar conta de que a grande contradição no mundo de hoje é entre quem tem conhecimento e quem não tem". Ele diz ter abandonado o PT "ao perceber que ele não ia dar o salto necessário". E acrescenta: "Acho que nem vai dar. Calculo que vai demorar uns 10 ou 15 anos para o PT despertar de novo".

O sr. diz que o PT surgiu de grupos sociais já organizados. O que isso quer dizer?

Quer dizer que ele atua e fala para esses grupos, não para a nação. Devido a essa origem, o PT montou um governo que se sente familiar a esses grupos e acha normal atendê-los, ao invés de discutir um projeto para todo o Brasil, no longo prazo. São setores, por exemplo, do serviço público, dos sindicatos fortes, das universidades. Assim, o governo empenha-se em criar empregos públicos e não acha prioritário estimular empregos nos outros setores de produção. Gasta energias com a reforma universitária, numa lei que vai destinar 75% dos recursos do Ministério da Educação para as universidades federais, e não implanta o que eu chamei de "revolução das crianças", uma profunda mudança no ensino fundamental.

Por que isso aconteceu?

Já falei dessa tese em um livro, A Revolução da Esquerda e a Invenção do Brasil, lançado em 1992. Hoje você tem no Brasil os donos do capital - a chamada elite -, os trabalhadores organizados e os excluídos. É quase uma continuação dos tempos da escravidão, quando havia também três grupos, os brancos ricos, os brancos trabalhadores e os escravos. O PT vive e sente como parte do grupo do meio, não do de baixo.

E o que isso significa, na prática? Significa a impossibilidade de se repensar o Brasil e melhorá-lo para as próximas gerações. O fato é que a revolução tecnológica e cultural, com todo o seu impacto, exigiria uma reavaliação que o PT não fez. Dou um exemplo: a grande contradição histórica, hoje, é entre quem tem conhecimento e quem não tem. Não é mais entre capital e mão de obra.

Por que isso é importante?

Porque, assim, o PT se torna um partido igual aos outros. Quando ministro, tentei dar toda ênfase ao ensino fundamental. Quando saí do MEC, o esforço voltou-se para a reforma universitária. Caramba, até o Evo Morales, na Bolívia, que acabou de entrar, já está pondo em prática um plano de combate total ao analfabetismo no país, com prazo para acabar. Aqui, não se mexeu na estrutura arcaica que divide a educação em três fases, o ensino fundamental para municípios, o médio para Estado e o superior para a União. Cada prefeito faz sua parte como pode, alguns bem, outros não. Como está hoje, a merenda é mais importante que o livro. Nenhum país se constrói com alunos que vão à escola só por causa da merenda. Olha, eu convivi com o Lula e pude perceber uma coisa grave: ele não tem nenhuma obsessão por mudar o Brasil. Não é do tipo de pagar para ver.

O presidente tem feito muitos discursos sobre projetos futuros.

Ele não fala para o Brasil, fala para grupos organizados. Aqui para mulheres índias, ali para empresários numa feira de gado, ou para militantes sindicais. E só de reivindicações imediatas, não pensa o País do futuro.

O PT é responsável por isso?

Sim, mas o trágico não é o PT cometer tantos erros na economia, os desvios na política. O trágico é ver a incapacidade de seus militantes de se indignar com os erros, com um projeto que foi abandonado. O que vai matar o PT é a perda da indignação, não a corrupção.

O que pode ocorrer a longo prazo?

O País vive um processo de enfraquecimento, de despartidarização, que pode nos aproximar de algo parecido com o chavismo. Mas é pior, é um chavismo sem projeto, se o governo continuar assim. Não vou aqui defender os métodos do Hugo Chávez, mas ele tem um projeto para a Venezuela daqui a 30 anos. Nós não temos.