Título: Tentando conter o dragão
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2006, Notas e Informações, p. A3

C oincidindo com a primeira visita aos Estados Unidos do presidente da China, Hu Jintao, que já chegou acenando aos americanos com oportunidades de negócios biliardários, a Organização Mundial do Comércio (OMC) deu início a uma abrangente avaliação da política comercial chinesa - a dimensão do sistema mundial de intercâmbio que mais inquieta as economias do Primeiro Mundo. Não é para menos. As exportações representam 40% do PIB chinês - o qual se multiplicou por 9 desde 1978, quando Pequim iniciou a sua guinada de proporções históricas para a economia de mercado. Entre 2001 e 2005, as vendas externas do país cresceram algo como 137%, chegando a US$ 2,6 trilhões. Já as importações aumentaram 28%, para US$ 2,2 trilhões.

Nesse ritmo, em 2010 a China ultrapassará os Estados Unidos e a Alemanha para liderar as exportações mundiais. A ascensão econômica chinesa, capaz de abalar a hegemonia do Ocidente mais o Japão na nova ordem global, é uma das questões centrais da atualidade. Não é exagero prever que, nas próximas décadas, talvez só a crise ambiental rivalize com os efeitos da revolução econômica em curso na China em matéria de impacto e alcance mundiais. (Sem falar que, ao reproduzir aceleradamente os padrões ocidentais de exploração dos recursos naturais e consumo de derivados de petróleo, o país tenderá a se tornar um dos maiores poluidores do planeta.)

Um oceano de paradoxos, a China é uma ditadura comunista que se abriu ao capitalismo - e ao capital externo - com a gana dos recém-convertidos. São 280 mil as empresas estrangeiras no país, desde megamultinacionais até companhias de menor porte financiadas pela diáspora chinesa - e 700 laboratórios da mais alta tecnologia.

As mesmas corporações que cobram dos países emergentes reformas que as protejam de surtos estatistas e lhes assegurem o retorno seguro e a repatriação dos capitais investidos lançam-se à China com um entusiasmo assombroso, quando se leva em conta, como escreveu dias atrás o deputado Delfim Netto, que o país "não conhece um Judiciário independente, a propriedade privada é mal definida, o sistema bancário é estatal e precário, a lei de patentes é suficientemente frouxa".

Na grande maioria dos setores do sistema produtivo chinês, em regime de capitalismo selvagem, as condições de trabalho e paga não diferem substancialmente daquelas que Marx e Engels - e Charles Dickens - retrataram com tintas implacáveis na Inglaterra de século e meio atrás. É, sabidamente, o que confere absoluta superioridade aos bens de consumo de massa made in China na competição pelos mercados internacionais e o que atrai empresas do mundo inteiro que em nenhum outro lugar poderiam produzir mais barato. No entanto, mesmo em meio à selvageria capitalista, a renda por habitante no país quase decuplicou desde que Deng Xiao-ping lançou a palavra de ordem "enriquecer é glorioso", há três décadas.

Entre 1990 e 2003, a proporção de pobres - com renda familiar inferior a US$ 1 por pessoa - despencou de 73% para 32% da população. Não há memória de metamorfose semelhante no mundo, considerando os siderais números absolutos envolvidos.

Ainda assim, o contingente abaixo da linha da pobreza soma 200 milhões - e todos os anos, segundo relatório oficial encaminhado à Organização Mundial do Comércio, a China precisa criar 24 milhões de empregos urbanos. A liderança chinesa precisa fazer malabarismos para controlar as tensões sociais internas, agravadas pela explosiva desigualdade de renda entre cidade e campo, com uma profusão de novos postos de trabalho e, ao mesmo tempo, abrir o mercado para a produção estrangeira.

O déficit comercial dos Estados Unidos com a China alcança US$ 202 bilhões - e as queixas americanas contra o protecionismo chinês e a recusa de Pequim de valorizar o yuan estão na ordem do dia. Por isso, o presidente Hu Jintao não perdeu tempo ao desembarcar na América. Antes até de se encontrar com o presidente Bush, na quinta-feira, ele cortejou colossos empresariais como a Boeing, confirmando a compra de 80 jatos comerciais no valor de US$ 5, 2 bilhões e lembrando que o seu país precisará adquirir mais 2 mil aparelhos ao longo dos próximos 15 anos. E tomou champanhe Dom Perignon com o homem mais rico do mundo, Bill Gates, da Microsoft.