Título: O fio da meada
Autor: Paulo Renato Souza
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

A crise política desencadeada pela revelação do gigantesco esquema de corrupção instalado no País pelo governo do Partido dos Trabalhadores parece não ter fim. Novos fatos a cada dia não só acrescentam surpresas antes inimagináveis, como também desafiam os limites de nossa capacidade de indignação. Há exatos dez meses eu já destacava, neste mesmo espaço, que nesse processo o maior crime cometido pelo partido e por proeminentes membros do governo do presidente Lula era contra a democracia e o aperfeiçoamento democrático de nosso país, destruindo o já precário sistema partidário existente e jogando muita lama sobre a instituição maior do regime democrático, o Congresso Nacional. Desde então, o tempo e os fatos, infelizmente, só corroboraram esse diagnóstico.

Ao longo desses meses assistimos a uma repetida tentativa do presidente e de seus principais auxiliares e correligionários de ignorar a dimensão da crise e suas conseqüências sobre o nosso regime democrático. Isso tudo na contramão dos fatos, evidências e confissões trazidas à luz pelas investigações desenvolvidas no âmbito das várias CPIs ou por trapalhadas cometidas pelos próprios membros do governo ou dos partidos da base de apoio e seus colaboradores. Poderia até ser cômico, como chegou a prever um dos dirigentes partidários envolvidos, não fosse a imensa tragédia para nosso país que isso tudo significa.

Esses esquemas de corrupção organizada para financiamento partidário, compra de apoios no Parlamento ou benefícios pessoais não começaram agora, como hoje sabemos. Há um padrão muito semelhante detectado em várias administrações municipais petistas nos últimos 10 ou 15 anos e em muitas práticas do movimento sindical brasileiro. Aparentemente, o que era feito impunemente nesses níveis foi transplantado diretamente para o plano nacional, gerando um esquema de corrupção política sem precedentes em nossa História por sua abrangência, seu caráter sistemático e por sua coordenação governamental. Aparentemente, esqueceu-se que os meios de comunicação e a opinião pública no plano nacional têm dinâmicas exponencialmente maiores do que no âmbito local ou setorial. À medida que os fatos vinham à tona, o governo preocupou-se apenas em gerar explicações inverossímeis ou em desqualificar testemunhas. A aparente solução de um problema acabava sempre gerando muitos outros mais.

Não foi apenas o governo que deixou de perceber a gravidade da crise. Em muitos momentos, também o Congresso e o Supremo Tribunal Federal vacilaram nessa percepção e deixaram de adotar medidas que demonstrassem ao País, de maneira cabal, seu compromisso com a defesa das instituições e das práticas democráticas. Se o Congresso foi razoavelmente eficaz na apuração dos fatos, produção de confissões e identificação de parte dos recursos públicos desviados nesse esquema, foi também extremamente inepto e benevolente na aplicação de sanções aos culpados e réus confessos. Gerou-se um espírito de corpo para salvar deputados acusados que só fez ampliar a desmoralização do Poder Legislativo iniciada sob patrocínio do governo. De outra parte, algumas ações do Supremo passam à população a impressão de colaboração com as tentativas governamentais de atrapalhar as investigações, ao acatar argumentos meramente formais e laterais aos temas investigados em ações cujo objetivo claro é o de procrastinar a apuração dos fatos.

Entretanto a denúncia apresentada ao Supremo Tribunal Federal na última semana, pelo procurador-geral da República, sobre o esquema de corrupção instalado no Planalto descreve com assombrosa riqueza de detalhes todo o esquema de compra de apoio parlamentar com recursos públicos. Agora, as evidências levantadas pelas CPIs, pelo Conselho de Ética da Câmara e pelo Ministério Público apontam todas na mesma direção. Passa a ser impossível ao presidente Lula continuar se esquivando de qualquer responsabilidade ou simplesmente acusando a oposição e a imprensa de promoverem uma onda de denúncias sem base real.

O povo brasileiro a tudo assiste atônito, impotente e com imensa indignação. Basta estar atento ao que circula na internet e às conversas nas ruas ou nos bares para perceber o tamanho da desilusão. O pior é que esses sentimentos se voltam em proporção não desprezível contra as próprias instituições democráticas, mormente o Congresso Nacional. É difícil hoje falar em política com o cidadão brasileiro e o número dos que pretendem anular seu voto assume proporções alarmantes. Uma tarefa gigantesca dos partidos e candidatos comprometidos com a causa democrática em nosso país será a de mostrar ao eleitorado que renunciar ao voto nesse momento é apoiar a continuidade desse nefasto processo autoritário.

Um debate relevante, sem dúvida, procurará esclarecer até que ponto esse processo todo teve caráter premeditado, com o objetivo de interromper o processo de aperfeiçoamento da democracia brasileira que, inequivocamente, vinha ocorrendo desde o início dos anos 1980. Algumas incursões autoritárias vêm sendo observadas desde o início do atual governo - algumas com êxito e outras rechaçadas pela sociedade. Mais importante do que diagnosticar razões subjetivas, contudo, é reagir a esse processo de desconstrução de nossa democracia. É preciso promover uma espécie de refundação da democracia brasileira, para dar lugar a instituições mais sólidas, a partidos mais organizados, a uma vida pública mais transparente. Na minha visão, é precisamente no fortalecimento do Congresso Nacional e do sistema partidário brasileiro que encontraremos o fio da meada que nos permitirá retomar o caminho do aprimoramento da democracia em nosso país. Essa deve ser a principal agenda do futuro governo e do Congresso a ser eleito em outubro.