Título: Após pressão interna, Evo muda discurso sobre reforma agrária
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/05/2006, Economia & Negócios, p. B4

Para quem chegou a falar em "revolução agrária", o primeiro passo do governo do presidente da Bolívia, Evo Morales, na condução da reforma agrária chama a atenção pelo tom geral moderado. No início dos debates, chegou-se a usar a palavra "nacionalização da terra". Agora, fala-se em "distribuição da terra". Também se fala em "consenso" entre o movimento social que pôs Evo no poder e empresários que trabalham dia e noite para atrapalhar seu governo.

"Não vamos expropriar terras", esclareceu mais de uma vez o presidente em exercício, Álvaro García Lineira. Anunciado na tarde de ontem em Cochabamba por dois ministros e pelo próprio García Lineira, o rascunho de reforma agrária não é um decreto pronto, acabado e assinado pelo governo, como aconteceu com a nacionalização dos hidrocarbonetos. Será debatido e discutido pelas organizações de base que apóiam o governo - entre as quais se encontra uma versão boliviana do Movimento Sem Terra - e também pelos empresários do agronegócio antes de serem transformados em lei.

O principal ponto da proposta é a entrega imediata de até 4,5 milhões de hectares de terras a indígenas.

A discussão sobre terras na faixa de 50 quilômetros da fronteira, proibida pela Constituição, não foi tratada de forma explícita pelas autoridades. Elas disseram genericamente que vão cumprir a legislação em vigor, que determina que essas propriedades sejam retomadas pelo governo.

Entre assessores do Ministério do Desenvolvimento Agrário, considera-se que o recado está dado para empresários - brasileiros, argentinos ou coreanos - que tenham comprado terras nessas condições, utilizando testas-de-ferro.

Responsáveis por receitas de exportação da ordem de U$ 500 milhões por ano, as maiores do país depois da venda de gás e petróleo, os empresários do agronegócio acreditam que sua pressão foi capaz de provocar um recuo na posição original do governo. Mobilizados nas últimas semanas contra os rumos da reforma agrária, ele cobravam uma uma abertura ao diálogo, o que acabou ocorrendo.

Na agenda do governo de Evo, que ainda ontem seguia em viagem pela Europa, com retorno ao país previsto para hoje, o debate sobre a reforma agrária tem um impacto político diverso das discussões sobre a nacionalização dos hidrocarbonetos. Os principais atingidos pelo decreto de nacionalização são empresas estrangeiras. Mesmo políticos conservadores puderam dar declarações de simpatia à medida, pois não eram atingidos diretamente.

Com a reforma agrária, o governo de Evo Morales entra numa zona de conflito interno, que pode terminar bem - ou ter conseqüências imprevisíveis, pois atinge interesses consolidados por décadas de história boliviana, o que justifica a atitude cautelosa do Palácio Queimado. "Queremos um processo de diálogo e conserto" disse García Lineira. "Temos diferenças e precisamos chegar a um consenso, seja num período de semanas, ou de meses."

Na prática, a maioria dos decretos anunciados não contém idéias novas. Apenas aceleram processos de distribuição de terras já previstos pela legislação anterior mas que não saíam do papel por desinteresse dos governos de plantão. No esforço para evitar conflitos em demasia, o governo decidiu deixar as mudanças mais profundas - e radicais - para os debates da Assembléia Constituinte, a ser eleita a 2 de julho.

A reforma agrária faz parte da história do MAS, o partido do governo, e da própria carreira de Evo, líder dos cocaleiros.

No campo oposto do debate, encontram-se os empresários de Santa Cruz e de outras regiões do país. Quando se compara o mapa das propriedades de terra com o mapa eleitoral, chega-se a uma situação curiosa. A parte ocidental da Bolívia, onde Evo construiu sua formidável liderança política, é uma região de pequenas propriedades, onde pouco há para se fazer. A parte oriental, onde se encontram os grandes proprietários, também é a região do país onde Evo teve a menor porcentagem de votos. É justamente nesse lugar que os movimentos sociais que apóiam o governo fazem pressão a favor de desapropriações.

"Eles querem que os políticos paguem a conta", afirma Carlos Rojas, presidente da Associação Nacional de Produtores de Oleoginosos e Trigo (Anapo), referindo-se a parlamentares e ex-ministros que valeram-se de laços de amizade nos governos anteriores para conseguir financiamento rurais, mantém investimentos fracassados e podem ser condenados pela baixa produtividade.