Título: Há fome e comida
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2006, Notas e Informações, p. A3

Fez muito bem o governo em encomendar, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, novos estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o objetivo de avaliar o grau de segurança alimentar da sociedade brasileira, através de metodologia que, pela primeira vez, permite identificar e contar o número de pessoas em diferentes estágios de risco alimentar. Esses dados são necessários para a orientação de um governo que prometera, infelizmente sem conseguir cumprir a promessa, três refeições diárias para cada família no Brasil. O estudo vale, antes de tudo, para apresentar um quadro mais preciso e delimitado de um grave problema, até aqui abordado apenas por generalidades retóricas, regra geral demagógicas; e também vale para comprovar o quanto as boas intenções (e até a melhor "vontade política") podem se distanciar da dura realidade.

Desde já se destaque o aspecto mais grave da questão: cerca de 3,3 milhões de famílias de todo o País, o que equivale a 14 milhões de almas e a uma porcentagem de 7,7% da população, convivem cotidianamente com o sofrimento da fome. Enquadrados no que o IBGE chama, um tanto eufemisticamente, de "insegurança alimentar grave", estes cidadãos brasileiros passam fome por absoluta falta de dinheiro para comprar alimentos. Este último detalhe é importante porque já fez parte de uma certa ideologia identificar, também sob estes tristes trópicos, algo semelhante ao que ocorre nas regiões mais miseráveis do mundo, onde nem alimento existe para sua população. Entre nós há alimentos - e alimentos baratos -, mas há a pobreza que impede os necessitados de adquiri-los. Certo é que para estes a solução não poderia dispensar os programas sociais - desde que não se confundam com o puro assistencialismo e deixem uma porta de saída, contribuindo para facilitar o emprego que proporciona renda e possibilidade de desenvolvimento pessoal.

Em um universo mais amplo, que engloba também os que não passam fome, mas convivem com a preocupação de eventual falta de comida, o estudo os identifica sob a gradação de "insegurança alimentar leve, moderada ou grave" - onde estão cerca de 18 milhões de residências, no total habitadas por nada menos do que 72 milhões de indivíduos, quase 40% da população do País. Nos dois segmentos mais castigados desse universo está uma população em torno de 40 milhões de cidadãos, ou 22% da população total do Brasil.

Os dados também comprovam, mais uma vez, as tristes disparidades regionais, com o Norte e o Nordeste liderando as trágicas estatísticas da fome, visto que mais da metade das populações dessas regiões não pode adquirir alimentos suficientes para assegurar uma sobrevivência dentro de padrões mínimos de dignidade. E atestando, como sempre, qual seja a região mais miserável do País, com 18% dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave, está o Maranhão, castigado por um atraso político que lhe trava o desenvolvimento há quase quatro décadas.

No ranking da insegurança alimentar, estão nas últimas posições o Maranhão (18,0% dos domicílios), Roraima (15,8%) e Paraíba (15,1%). Nas melhores posições estão Santa Catarina (2,0%), São Paulo (3,4%) e Rio de Janeiro (3,7%). Essa classificação, como é fácil perceber, reflete o desenvolvimento socioeconômico das regiões onde se situam aqueles Estados.

Mas o que torna a situação especialmente dramática, quando examinadas as perspectivas de futuro do País, é que nada menos da metade das crianças de 4 anos de idade está sob risco de insegurança alimentar. A mínima tragédia a se deduzir dessa informação é a perspectiva de uma subnutrição endêmica, capaz de marcar gerações com seus efeitos deletérios sobre a capacidade de raciocínio e aprendizagem. E aí não dá para se deixar de trazer à baila, a par das discussões sobre a eficácia dos programas sociais, a questão do planejamento familiar, paternidade responsável ou que nome se queira dar a um mínimo de racionalidade reprodutiva - pois, se depender do fluxo espontâneo da demografia, a pobreza e a fome serão o destino de grandes parcelas da população.

Há que se ter lucidez e coragem política para enfrentar o problema.