Título: "A realidade é que o PT se transformou numa fantástica máquina burocrática"
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2006, Nacional, p. A10

Fundador do partido e hoje um forte crítico de seus atos, ele diz que o seu caráter transformador 'não se recupera'

Encontros nacionais como o que o PT realiza a partir desta tarde, para discutir um programa de governo e uma política de alianças, são irrelevantes. Seu impacto na vida concreta do partido é mínimo, "pois a grande realidade é que o PT se transformou numa formidável máquina burocrática e nesse estágio as questões ideológicas e programáticas perdem importância", afirma um dos fundadores do petismo e hoje um de seus mais duros críticos, o sociólogo e professor Francisco de Oliveira.

A esquerda, diz ele, está "completamente desarticulada" por causa da "trombada monumental que sofreu com os rumos que o partido tomou". Além disso, acrescenta, "nem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem o PT aprenderam com os erros cometidos, e portanto, se candidatam a repeti-los", na hipótese de um segundo mandato de Lula.

Sociólogo aposentado, "mas trabalhando mais que antes", Oliveira dedica-se a fazer pesquisas, ler teses e coordenar o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), da Universidade de São Paulo. Acabou de preparar duas análises para o livro A Era da Indeterminação, uma coletânea de estudos a ser publicada em breve. Uma dessas análises, que deu título ao livro, aborda o que ele chama de "processo de desmanche do PT". A outra, intitulada Momento Lenin, estuda o fracasso do presidente Lula, "que chegou ao poder para fazer uma ampla reforma no quadro político do País e chegou a um ponto em que o partido se resume a ele".

Como o sr. avalia o PT no momento de seu 13º Encontro Nacional?

Sem fazer tábula rasa disso tudo, diria que tem pouca efetividade. Uma reunião como essa, decida o que decidir, quando - e se - Lula se reeleger, vai ter muito pouca importância.

Por quê?

Esses debates e decisões têm muito pouco impacto na vida do partido. O PT foi transformado, ao longo desses 25 anos, numa formidável máquina burocrática, com interesses específicos. Ficou um partido igual aos outros. Tem rotinas, relações com fontes do poder, até empregados que recebem salários. O peso da ideologia, de questões programáticas, é muito pequeno.

E, na prática, o presidente Lula enfrentaria, caso eleito, os mesmos dilemas para montar uma base de sustentação, não?

Não só por isso. Mas porque, como máquina partidária, o partido ficou completamente desvinculado das origens. Mas isso não é específico do PT. Na história dos partidos há uma trajetória em que a organização partidária geralmente se descola das bases sociais. Em alguns casos, de forma bastante grave.

Partidos de esquerda do mundo inteiro viveram esse problema.

Sim, e a esquerda está completamente desarticulada. No Brasil, levou uma trombada monumental. Quando o partido derivou para esse pragmatismo político, toda a esquerda brasileira sofreu, com conseqüências devastadoras.

E quais as perspectivas da esquerda fora do PT?

Há outras iniciativas tentando manter a cabeça fora d'água. O PSOL é uma delas. Mas são bastante precárias, não pela vontade das pessoas, mas porque a conjuntura é muito desfavorável. É um pouco como ocorreu com a esquerda mundial. Ela sofreu um duro golpe com a fragmentação da União Soviética. Ficou uma fratura exposta e a esquerda não se refez.

O quadro já era assim em 2002 e o PT era visto mundialmente como uma grande esperança.

Ele era uma espécie de exceção. Até hoje temos muita dificuldade em explicar, no exterior, o que se passou aqui. Muita gente não aceita a interpretação de que o PT fracassou.

Mas o partido se envolveu também em atos irregulares, em corrupção, a ponto de precisar livrar-se de seus principais líderes. O partido aprendeu a lição?

Não, de modo nenhum. Eles não aprenderam nada. E, por esquecerem os erros, estão condenados a repeti-los. O segundo mandato de Lula, se houver, vai ser igual ao primeiro, ou pior.

Qual o peso que o senhor dá, nisso tudo, ao presidente Lula e ao ex-ministro José Dirceu?

O peso deles é muito grande. Não tenho conhecimento específico de atos de corrupção praticados por nenhum dos dois personagens, mas o peso político deles foi decisivo. Em especial o do Lula, porque o partido terminou por resumir-se a ele. É uma pessoa. Não tem bases, no momento, para organizar uma campanha. Vai apelar para a militância e não vai encontrar resposta, a militância está desmobilizada.

O que há para dizer então aos militantes, sobre o futuro do partido?

Não tem futuro nenhum. O PT seguirá tendo uma máquina formidável, mas a influência das bases deixou de ser relevante. Aos poucos a estrutura burocrática foi ficando mais poderosa no partido.

Um pouco parecido com o que virou o PMDB?

O PMDB é como um satélite que reentrou na atmosfera e partiu-se em mil pedaços, cada um para um lado. Qual a relação entre os governadores Jarbas Vasconcelos (Pernambuco) e Roberto Requião (Paraná)?A escolha da Rita Camata pelo PSDB para vice do José Serra, em 2002, mostrou: um partido como o PMDB não puxa mais votos majoritários.

O presidente Lula é um forte puxador de votos.

Na verdade, o PT tornou-se satélite de Lula. Então, o futuro do PT é o seguinte: enquanto o carisma de Lula resistir, o PT continuará agregado a ele. Se o Lula sai da política - agora, ou se se reeleger, mais tarde - ele se torna apenas um chefe político. Aí o processo de desintegração do partido vai começar.

O que significa essa desintegração do partido?

Na melhor das hipóteses, o presidente Lula se reelegendo, o partido tem mais quatro anos de carência. A partir daí, como diria a voz popular, só Deus sabe. Ele pode continuar como máquina política, mas seu caráter transformador já se perdeu. Isso não se recupera.

O senhor tem dito, em várias ocasiões, que o PT se formou de um tripé que tem uma perna na Igreja, outra nos sindicatos e a terceira entre os intelectuais. São partes diferentes entre si. Isso contribuiu para a crise do partido?

A contribuição das comunidades eclesiais de base para formar o PT foi extraordinária. Foi ela que levou à formação, no PT, de um senso de ética raro nos partidos brasileiros. A influência sindical já foi bem mais pragmática - e ela era muito pouco educada, politicamente, bem diferente das gerações anteriores do sindicalismo do ABC, que tinham uma formação muito melhor. Vale lembrar que o Lula, no auge do crescimento econômico, nos anos 70, afirmava que "ao trabalhador não interessa a política, interessa o salário".

Mas os tempos foram mudando, e o PT também mudou, não?

Sim, e a politização do partido foi dada por novos fatores. Um deles foi o movimento pela redemocratização. É bom lembrar que as greves eram apoiadas por boa parte da sociedade organizada. O MDB fazia a resistência à ditadura, o dr. Ulysses Guimarães ia à frente das passeatas para refrear a repressão. Esse peso da redemocratização sobre o sindicalismo anda esquecido. Contribuiu também para a politização a parcela de ex-militantes da luta armada que decidiu aderir à política partidária.

Apesar dessas contribuições, o PT acabou se desviando de seus objetivos. Como isso aconteceu?

O problema é que depois se montou uma estrutura burocrática no centro da qual está Lula. Ele tenta agora se distanciar, por causa do desgaste enorme sofrido com as denúncias de corrupção. Mas essa estrutura gira toda em torno do Lula. Ele não tem nada de inocente.